Se hoje os Estados Unidos passam por mais um período bem conturbado com a questão do racismo e a comunidade negra se vê – mais uma vez – na posição de se organizar para lutar por direitos e pelo fim da violência contra os seus, na música, eles já venceram há muito tempo.
No final do ano passado, D’Angelo veio com seu Black Messiah, após 14 anos sem gravar, e colocou um frescor sem fim no R&B, o Rythm and Blues. Em março desse ano, Kendrick Lamar lançou seu terceiro álbum, o To Pimp a Butterfly, cheio de um hip-hop transloucado e jazzístico.
Stryke 2.
Nesse meio tempo, muita coisa acontecia na “América”.
“I can’t Breath.”
A frase “eu não consigo respirar” ficou na cabeça dos americanos nos últimos meses, dita por Eric Garner, um homem negro que foi morto pela polícia de Nova Iorque em dezembro de 2014. A população se manifestou, jogadores da NBA protestaram, o tema do racismo foi levantado.
Em abril de 2015, foi a vez de Freddie Gray, em Baltimore, um jovem negro que foi preso e chegou em coma no hospital, falecendo tempos depois. O fato provocou uma onda de protestos que se arrastou até maio. A comunidade negra já estava bem sensibilizada e o tema do racismo andava mais em voga e aflorado. Em junho, um jovem branco invadiu uma histórica igreja da comunidade negra em Charleston, na Carolina do Sul, e dispara contra pessoas lá dentro, matando 9 delas.
Nos últimos oito meses, muita coisa aconteceu com os negros nos Estados Unidos. Nesses oito meses, com o bom e com o ruim, uma música estava pegando todo mundo de jeito e chegou a entrar na lista das 10 canções que mais viralizaram no Spotfy e virou até trilha para um comercial do Iphone. Essa música era “Coming Home”, do cantor Leon Bridges.
Nada de disco, uma música lançada para atiçar, e a gravadora – a Columbia Records – sabia que a aura retrô da canção faria funcionar bem o boca a boca. E deu certo.
Foram meses de aguardo, até que no último dia 23, o disco de mesmo nome foi lançado.
“Coming Home“ e o soul em boas mãos
Um baita disco começa muito bem e Coming Home cumpre bem demais esse papel com uma trinca linda de abertura, a canção homônima, a segunda faixa, “Better Man”, e a terceira e graciosa “Brown Skin Girl” são baladas dançantes que mostram de cara a delícia vocal do cantor que bebe da mais pura fonte dos anos 50 e 60, constantemente comparado com Sam Cooke, um dos maiores ícones da soul music. “Lembra Marvin Gaye nos primeiros anos”, “nossa, isso é muito parecido com Nat King Cole” e outras comparações lisonjeiras, mas que ainda não fazem jus à esse debute.
“Shine” eleva o potencial do gospel travestido de pop, um bom gosto sem tamanho nas vozes que acompanham e no acompanhamento do órgão. “Lisa Saywer” mantém o som que pega no espírito, um doo-wop que conta o batismo da garota nascida em New Orleans em 1963, filha de Eartha e Victor.
Do balanço negro do meio do século passado, mas trazido para os dias de hoje, sem amarelado e sem mofo vem “Flowers”, com uma guitarra e bateria carregadas de suingue e o pedido para chacoalhar e se mexer bem rápido, como uma bala saindo do revólver. A essa altura da audição você já vai ter notado o saxofone e sua incrível capacidade de chegar na fina linha entre o estiloso e o brega, sem ter ultrapassado para o lado de lá uma vez sequer. Aparece quando precisa, some quando não se faz necessário.
E se um disco já merece muitos méritos por começar bem, Coming Home termina da melhor maneira que poderia terminar. “River” é uma balada potente de tão simples. Guitarra comedida, uma meia lua pontuando e as vozes. E a voz de Leon Bridges cantando redenção. Quase nada e diz absolutamente tudo.
Leon Bridges veste sapatos bicolores e calças de cintura alta, camisas listradas e um corte de cabelo impecável de topete e risca lateral. Seu disco de estreia é um hino de aconchego e acalento, é cafuné, é carícia, é agrado.
E, se o caldeirão atual promove intranquilidade social de uma situação que há muito deveria ter sido extirpada, pelo menos a música negra pode dormir sossegada porque ela não poderia estar em melhores mãos.
Vídeos:
As apresentações ao vivo do Leon Bridges são feitas com arranjos diferentes dos das gravações do disco. recomendo fortemente a audição do álbum Coming Home e, depois, ver de novo as versões ao vivo e em boa qualidade no YouTube.
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