Gene Roddenberry, o criador da série original de Star Trek, que foi ao ar entre 1967 e 1969, queria mostrar que a humanidade alcançaria a maturidade e a sabedoria para não apenas tolerar as diferenças, mas apreciá-las e admirá-las. Segundo ele:
“Se não podemos aprender a realmente gostar dessas pequenas diferenças, entre indivíduos da nossa própria espécie, aqui neste planeta, então não merecemos ir para o espaço conhecer toda a diversidade que é quase certa lá fora.”
A franquia derivada de sua criação, que recentemente completou 50 anos, inclui sete séries de TV (incluindo a nova série produzida pelo Netflix), 13 filmes, além de livros, jogos, quadrinhos e gerações de fãs fiéis e dedicados a um universo vasto e bastante complexo. A diversidade é um dos pontos altos de todas as versões dessa novela espacial, com tripulações sempre formadas por indivíduos de diferentes espécies, raças e gêneros, mas especialmente nas séries para a televisão onde essas questões puderam ser melhor trabalhadas.
Star Trek – A série Original (1967 a 1969): Amizade e Diversidade
Cada uma das séries de TV tem um capitão que impõe um estilo de liderança diferente. Na série original o capitão James Tiberius Kirk (William Shatner) é impulsivo, galante e sarcástico. Seu imediato é também seu ponto de equilíbrio – Spock (Leonard Nimoy), meio humano, meio vulcano, lógico, analítico, controlado. A interação entre esses dois personagens e o médico da nave, Dr. McCoy (DeForest Kelley), dá o tom da série e mostra vários aspectos da amizade masculina.
Além disso, em meio à Guerra Fria, Roddenberry colocou um piloto japonês (Sulu – George Takei) e um co-piloto russo (Chekov – Walter Koenig) na sala de comando da nave USS Enterprise, além de uma mulher negra como chefe de comunicações (Uhura – Nichelle Nichols). Ela e o capitão Kirk foram os protagonistas do primeiro beijo interracial da TV norte americana. A diversidade é condição essencial para a construção do universo de Star Trek.
Episódios como Amok Time (2ª Temporada, episódio 01), que mostra o descontrole de Spock tomado pelo desejo de acasalamento dos vulcanos, ou Mirror, Mirror (2ª Temporada, episódio 10), que mostra o Universo Espelho, onde a Federação do Planetas Unidos é um Império e os personagens são versões sombrias do universo principal, estabeleceram os parâmetros para toda a franquia.
Star Trek – A Nova Geração (1987 a 1994): Reflexão Existencial
O capitão Jean-Luc Picard (Patrick Stewart) é o grande líder dessa série que se passa um século depois do final da série animada. Mestre da diplomacia e da tática militar, ele é um modelo moderno de capitão da Frota Estelar. Fugindo completamente do perfil “bucaneiro espacial” de Kirk, a erudição de Picard leva a série a explorar temas sobre a condição humana, ética, valor da vida, paternidade e legado. Patrick Stewart empresta sua formação shakespeariana ao personagem e eleva o gênero sci-fi na televisão.
Episódios como Tapestry (6ª Temporada, episódio 15), onde Picard confronta sua própria juventude, podendo então mudar os rumos do seu passado, ou The Inner Light (5ª Temporada, episódio 25) no qual ele vive uma vida inteira em 25 minutos, são exemplos da reflexão existencial que marca a série.
Uma menção especial ao personagem Data (Brent Spiner), que discute os limites da inteligência artificial e o que consideramos vida consciente, em especial nos episódios The Measure of a Man (2ª temporada, episódio 09), e The Offspring (3ª temporada, episódio 16). Imperdível!
Star Trek – Deep Space Nine (1993 a 1999): Choque entre culturas
Uma estação espacial controlada pela Federação dos Planetas Unidos serve de posto diplomático para a resolução de conflitos entre raças inimigas e de entreposto comercial entre quadrantes distantes do universo. Essa missão complexa cai nas mãos relutantes do capitão Benjamin Sisko (Avery Brooks), acompanhado por seu filho Jake (Cirroc Lofton) e o trauma da recente morte de sua esposa. Essa mistura de ONU e zona portuária dá um tom político muito forte para a série, mostrando o choque de culturas e de valores, falando abertamente sobre temas tabus como sexualidade e religião.
Episódios como Let He Who is Without Sin… (5ª temporada, episódio 07), que fala abertamente sobre sexo, prazer, monogamia e moral, e The Visitor (4ª temporada, episódio 03), uma das histórias mais emocionantes de toda a franquia onde Jake abandonando todos os seus sonhos para trazer seu pai de volta, são exemplos do foco da série na convivência e no choque entre culturas.
Star Trek – Voyager (1995 a 2001): Laços Afetivos
Depois de um confronto com os rebeldes (chamados Maquis) e a nave Voyager se perder em um quadrante do universo desconhecido pela Federação, a capitã Kathryn Janeway (Kate Mulgrew) tem que reconfigurar a missão original, para trabalhar em parceria com os rebeldes e acomodar a tripulação à nova realidade. Os estimados 70 anos que a nave levaria para retornar a Terra, são uma sentença de morte em vida para os tripulantes, que passam a criar novos laços familiares entre si.
Episódios como Lineage (7ª temporada, episódio 11), que mostram os traumas e inseguranças de uma futura mãe que precisa se reconciliar com sua herança genética, e Timeless (5ª temporada, episódio 06), onde os dois únicos sobreviventes da Voyager arriscam as próprias vidas para mandar uma mensagem ao passado e salvar a nave, mostram o tema da família e da força dos laços que forjamos por escolha.
Star Trek – Enterprise (2001 a 2005): Legado
Aproveitando o sucesso das três séries anteriores (que se passam todas no mesmo período de tempo), os produtores resolveram fazer uma série sobre o início da participação humana na Frota Estelar (antes da série Original). O capitão Jonathan Archer (Scott Bakula) transita entre o olhar inocente da exploração espacial e o moralmente questionável da guerra interplanetária. A tripulação da Enterprise constrói a aliança que dá origem à Federação consolidando o sonho de Gene Roddenberry.
Apesar da baixa audiência e do cancelamento, episódios como In a Mirror, Darkly (4ª temporada, episódios 18 e 19), que mostra os personagens no Universo Espelho, mais vis e cruéis do que nunca, e Shuttlepod One (1ª temporada, episódio 15), que mostra o desenvolvimento da amizade dos únicos dois tripulantes de uma nave auxiliar diante da certeza de suas mortes, são tudo que se espera de uma série sci-fi.
A metáfora da convivência amistosa entre a raça humana e raças e culturas alienígenas, tão cara ao criador da série, é um elogio à diversidade humana. A habilidade social que nos faz estabelecer laços afetivos, amizades e vínculos familiares, mesmo diante do choque de culturas e valores, é a nossa maior qualidade. Star Trek é um exercício ficcional de reflexão sobre a condição humana e sobre qual o legado que nós humanos queremos deixar para as próximas gerações.
Star Trek – Discovery: ?
Discovery (nova série da franquia que já estreou no Netflix), se passa entre o início da participação humana na Frota Estelar (Enterprise) e os filmes novos do reboot da franquia no cinema (nas mãos de J. J. Abrams). Diferente do ritmo e do formato (de episódios soltos) das séries anteriores, esse novo capítulo na saga da Federação segue a fórmula das séries de hoje, com temporadas desenhadas como um mega filme, e ação vertiginosa desde os primeiros minutos. Que o peso do legado de Gene Roddenberry ajude a série a encontrar seu equilíbrio até que a gente possa discutir: o que Star Treck vem nos ensinar dessa vez?
Vida longa e próspera!
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Esse texto faz parte da parceria editorial entre o PapodeHomem e Os Quadrinheiros. São dois textos originais por mês, publicados sempre às sextas-feiras para você se introduzir na linguagem do maravilhoso universo das histórias em quadrinhos e suas derivações.
Se você curtiu e quer mais é só conferir o site e o canal no Youtube, além do mais recente lançamento deles: o livro "Quadrinhos através da história. As eras dos super-heróis" lançado este mês em parceria com editora Criativa e o Observatório de História em Quadrinho da ECA-USP.
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