No fim de uma palestra do Lama Padma Samten, por volta de 2003, me aproximei e disse, todo orgulhoso: “Lama, eu acho que já entendi tudo. Já compreendo as visões mais elevadas, mas nada mudou”. O lama respondeu: “Então agora é o momento de sentar em silêncio”. Logo depois avisou que haveria um retiro de prática e aprofundamento começando no dia seguinte. Eu fui? Não, demorei mais dois anos para tanto.

Algum tempo antes, fui pela primeira vez ao templo Busshinji, no bairro da Liberdade em São Paulo. A professora me recebeu no horário de iniciantes perguntando se eu já tinha algum contato com o zen. Eu me gabei dizendo que havia devorado muitos livros. Ela não disse nada na hora. Depois de 40 minutos de prática, ao ver minha cara de dor, ela disse, na frente de todos, olhando para mim:

“Você é como o estudioso de dragões que possuía enciclopédias
e era especialista em catalogar todos os tipos de dragões, mas assim que um dragão de verdade começou a entrar pela janela de sua biblioteca, ele desmaiou de medo.”

Eu já havia lido esse conto (às vezes usado como koan), mas recebê-lo ali na hora foi uma porrada, foi meu dragão. Saí o mais rápido que pude, sem coragem de voltar lá.

“Você pode me indicar algum livro?”

É muito comum, quase diário, alguém pedir uma recomendação de livro. Em vez de simplesmente listar alguns títulos, eu costumo perguntar pelo que a pessoa realmente quer, como está sua vida.

Nossa cultura é tão teórica que parece que o único jeito de começar a fazer algo é primeiro ler. Na maioria dos casos, o livro apenas funciona como um substituto da prática — eu não preciso agir, pois já comprei vários livros sobre isso.

Quando a pessoa pede por livros sobre meditação, além de alguns títulos, eu sugiro grupos de prática, professoras e professores, retiros. Quando a pessoa pede por textos e livros sobre como lidar com uma traição, eu marco um café ou um Skype, sugerindo que ela aproveite essa situação para descobrir um treinamento que dure a vida inteira, que não apenas tente resolver.

Quando o assunto é florescimento humano, os livros servem apenas como um lembrete para manter a pessoa mais próxima da possibilidade de enfim praticar. Depois desse começo, um livro pode ser extremamente útil, principalmente se a pessoa aprendeu métodos para gradualmente tornar aquela sabedoria viva em suas ações cotidianas.

“Eu tento ser menos ciumento”

Para ilustrar esse obstáculo, gosto bastante de um exemplo que tenho usado no curso “Resposta padrão para qualquer problema de relacionamento”. Imagine que você encontre uma pessoa dizendo que vai para Barcelona. Você naturalmente pergunta “Já comprou as passagens? Vai quando? Por qual empresa de aviação? Onde ficará? Por quanto tempo?” e apenas ouve: “Ah, eu estou pensando em ir, estou querendo, estou tentando.”

Sempre que alguém disser “To tentando ser mais equilibrado” ou “To aprendendo a lidar com minha raiva”, a grande pergunta que precisamos fazer é: como? Exatamente de que modo você está fazendo isso? Qual o método?

Ler é um método pelo qual cultivamos uma mente que pensa sobre diferentes conteúdos. Ler não é um método pelo qual cultivamos a operação de liberar o ciúme, mesmo quando lemos sobre o ciúme.

Assistir a uma palestra linda cheia de bullet points e citações inspiradoras é um método pelo qual cultivamos um corpo torto na cadeira e uma mente que se entretém com conteúdos mais elevados. Em si mesmo, definitivamente não é um método para treinar a atenção ou para cultivar compaixão. 

Passar de novo e de novo por situações de ciúme não é um método
eficaz para superar o ciúme, ainda que a gente fale “Estou tentando
trabalhar com meu ciúme”.

Se perguntarmos “Como? Qual o método?”, não vai demorar para descartarmos diversos engodos e realmente chegarmos em duas clarezas: 1) clareza sobre o funcionamento da aflição (do ciúme, por exemplo); 2) clareza sobre quais processos devem acontecer para que a aflição se reduza. Ou seja, vamos nos aproximar das verdadeiras causas da confusão e das verdadeiras causas de sua liberação.

Por exemplo, se você recebe a instrução “Pare, foque no fluxo da respiração e solte qualquer fixação ao conteúdo dos pensamentos, aos dramas, às histórias, relaxando toda vez que sentir seu corpo tensionar”, e experimenta praticar, ainda que alguns benefícios demorem a surgir, você entende como e por que que eles vão surgir, assim como uma pessoa rapidamente entende como é que se faz gelo.

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A prática de ler não transforma o ciúme, mas a prática de soltar as fixações, soltar o conteúdo das histórias, relaxar as tensões mais sutis e depois investigar a natureza do ciúme olhando diretamente para seu surgimento interno, sim, com certeza, tal habilidade será muito útil em meio à uma crise de ciúme.

Sobre isso, transcrevi uma parte de uma palestra recente de Alan Wallace:

“Não basta querer algo. Você precisa conhecer suas causas — as circunstâncias e condições que precisam se encontrar para que você realize o que você deseja.

Se for um bolo de chocolate, você pode sentar o dia inteiro rezando “Que bolos de chocolate caiam do céu! Que eles se materializem no forno!” Provavelmente não dará certo. Mas se você aprende como fazer um bolo de chocolate, aí sim, você tem o desejo, a aspiração, a intenção, os ingredientes e então terá seu bolo de chocolate.

Portanto, por que esse processo seria diferente para a felicidade genuína? E por que seria diferente para ganhar uma liberdade cada vez maior do sofrimento, mais serenidade, paz interior, equilíbrio da mente?

Talvez seja isso: nossos desejos estão lá, nós certamente desejamos encontrar a felicidade, sensorial e também mental; nós certamente desejamos nos livrar do sofrimento, tanto físico quanto mental. E talvez esse seja o problema: nós ainda não descobrimos quais são as causas. Se nós não identificarmos as causas do sofrimento, e as erradicarmos; se não reconhecermos e cultivarmos as causas da felicidade (especialmente a felicidade mental), ela não vai acontecer.”

—Alan Wallace

O limite das boas ideias

A gente pensa o tempo todo, a gente já teve ótimas ideias, mas isso não foi suficiente para transformar nossa vida, não é mesmo? Temos a crença de que vamos a algum lugar apenas pensando, trocando de conteúdos mentais. Se isso é limitado até mesmo para o desenvolvimento intelectual (as grandes habilidades de pensar com rigor e metacognição, escrever, ouvir, dialogar, debater… nenhuma delas diz respeito a informações ou conteúdos específicos, mas a processos mentais), imagine o quanto não é limitado para o florescimento humano.

Nossa aposta na supremacia da mente discursiva nos leva a ignorar as camadas sutis onde a vida realmente acontece: nós emocionais, desequilíbrios de ânimo, flutuações de energia, enroscos, perturbações, aflições, tensões, emoções, espaços e posições sutis, qualidades e inteligências, jogos, atmosferas, bolhas…

A maior parte da vida e das relações acontece na mente não conceitual, emocional, não verbal, não discursiva. Onde sofremos, onde nos apaixonamos, onde nos alegramos, onde surge indiferença, apego, aversão, e também amor, compaixão, generosidade…

Porque mal olhamos para a sujeira de nossa vida mais sutil, somos reféns do autoengano (“Não preciso encontrar e testar métodos para liberar o ciúme porque quase não tenho ciúme e já tenho teorias sobre como lidar com o ciúme”), temos baixa imunidade contra picaretas autoajuda (bastam alguns livros, citações e histórias inspiradoras para tomarmos alguém como referencial de sabedoria) e compramos mais e mais livros e palestras isoladas, que nos dão a sensação de que estamos realmente avançando.

Nossa cultura teórica é produto de seres presos na cabeça, desincorporados. Por isso desconfio de qualquer transformação que não passe pelo corpo, pelo contato com o sofrimento e por todos os cantos da vida cotidiana.

Para concluir, deixo uma breve fala que inspirou esse quarto texto da coluna “Como a gente se transforma?”. No curso “Brilho no olho: como usar a sabedoria do silêncio na vida cotidiana“, que aconteceu em São Paulo no ano passado, Henrique Lemes nos disse:

“Todo mundo sabe que fumar cigarro faz mal, que batata frita muito gordurosa faz mal… Todo mundo sabe um monte de coisa. Mas entre a gente saber e chegar na hora, num buffet de restaurante, e manter aquela visão… tem um buraco. Porque a nossa relação com a comida, por exemplo, é uma relação de energia. A gente olha e ela começa a conversar com a gente: “Venha, venha…” E a gente vai.

Não é uma questão cognitiva. Não é um pensamento, não é uma ideia. É uma coisa que surge e nos pega por baixo. Quando menos percebemos já estamos fazendo. A relação que temos com as coisas é uma relação de energia.

Isso aqui é um treinamento, pessoal. Um treinamento profundo, complexo, de observação do mundo interno, dessa relação com a energia. Não é apenas uma questão teórica. Isso é super crucial para a nossa cultura porque a gente é muito teórico. A gente entende muita coisa, mas a gente não tem práxis, não tem meios de colocar isso em prática.”

—Henrique Lemes

Seguimos o papo nos comentários.

Gustavo Gitti

Professor de <a>TaKeTiNa</a>