O mundo mudou em 1968. Nesse ano foi concentrada toda a força do caldeirão cultural que vinha sendo experimentado desde o começo dos anos 60, época em que a alegria exacerbada dos anos dourados — a década de 50 nos Estados Unidos recém vitoriosos da Segunda Guerra e podres de ricos com o que ganharam com a batalha mundial ocorrida na Europa — começava a se transformar em um tédio sem fim.
Uma década de experimentos e rupturas. Provavelmente o embate entre gerações nunca foi tão forte quanto naquele momento no mundo todo. Quanto mais forte fosse o choque dos mais velhos, mais gostoso era para os mais jovens.
E a canção “Sympathy for the Devil” caiu como uma luva para a molecada.
Em junho daquele ano, os Rolling Stones lançavam o álbum Beggars Banquet, com uma capa que mostrava desordem, desobediência, falta de higiene ou apego a tradicões. É uma privada de banheiro de inferninho, com a parede toda escrita por pessoas que qualquer um, naquela época, imaginaria como escória, pervertidas e desnaturadas.
A canção que abre o disco começa com atabaques africanos e um grito. Na voz, um homem se dizendo rico e de bom gosto, e que está há tempos zanzando pelo mundo. Inspirado pelo romance soviético O Mestre e a Margarida, da década de 20, mas traduzido para o inglês pela primeira vez em 1967, Mick Jagger escreveu a letra como se fosse o diabo conversando com o ouvinte, contando de sua vida e esperando ansiosamente que você adivinhasse quem ele era.
Era para ser uma canção folk completamente inspirada em Bob Dylan, com aquele violão e a voz rasgada. Mas Keith Richards pensou que seria muito mais interessante de o som viesse travestido de samba, como se fosse um ritual afro ou do candomblé. Daí veio a percussão repetida, catártica, hipnotizante, que não sobe e não desce, mas que permanece quente o tempo todo, deixando o couro comer, as pernas baterem umas nas outras.
Completando, um piano faz as vezes de música gospel.
O pacote completo de contravenção. Imagine só você, um pai americano ou inglês, que viu seu país vencendo o nazismo e construindo um mundo asséptico, vendo seu filho chegar com toda a empolgação em casa, com um bolachão debaixo do braço e, em seu quarto, pulando feito enfeitiçado de algum vodu ao som de batidas de macumba misturadas com o “som de deus”, enquanto o diabo lhe explica que estava perto de Jesus quando este teve dúvidas e dor. E que essa canção saiu, quase que literalmente, de dentro de um vaso sanitário?
Os pais se enfureciam. A molecada delirava de alegria.
Dava para chacoalhar o corpo todo, aquele “u-hu… u-hu” repetindo de fundo, os braços moles, os olhos fechados, os pés batendo, girando, os olhos virando, a guitarra aguda que até ardia tentava expulsar os “caretas”. Devia ter sido um belo momento para se viver.
A combinação era por demais bombástica para os pais não se abalarem.
Corta para 2014.
O rock não assusta mais os pais. A esmagadora maioria deles ouviam rock n’ roll. Grande parte dos avós de hoje viraram os olhinhos escutando “Sympathy for the Devil”. Mas eles não contavam com o Funk.
A liberdade sexual (hoje, falar de diabo não assusta mais, mas falar de peito e bunda, sim) levada a enésima potência, um som repetitivo e penetrante (sem o trocadilho), o corpo que se move como quem pede por putaria a noite toda. Bem-vindo ao rock do novo milênio.
Questões artísticas e criativas de lado. Antes, o rock é que era a música pobre, de gente sem talento e estudo.
Mas, tanto lá quanto cá, o diabo faz seu belo trabalho.
“Muito prazer. Espero que você saiba o meu nome”.
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