E se existisse um programa da National Geographic sobre nossas cartografias internas?

Em vez de microscópios, telescópios e câmeras 3D, e se tudo o que costumamos descrever de modo exteriorizado fosse investigado por dentro com tecnologias de primeira pessoa? A série colaborativa “Mundo interno” vai começar essa brincadeira.

Experimento e desafio inicial

Enquanto começa a leitura desse texto, você coloca seus dois pés no chão, leva sua mente até a ponta dos dedos, sente o calcanhar, o pé inteiro paralelo ao piso. (Estou fazendo o mesmo enquanto escrevo.)

Sem perder a atenção aos pés, você respira profunda e suavemente uma vez, sem pressa. Solta o abdômen, os ombros, os músculos do rosto, a mandíbula, a tensão na mão e nos dedos. Você decide desacelerar a leitura e repousar um único dedo sobre a seta ↓ do teclado, apenas para acompanhar estas palavras.

Você experimenta relaxar o máximo que der em apenas um ou dois segundos, como num bocejo. Depois sente a respiração acontecendo por si só, sem esforço. O ar entra e preenche todo o espaço do corpo. O ar sai e nos esvazia, nos ajuda a soltar.

(Se você não está fazendo isso realmente, apenas lendo à distância, pode confiar, este é um experimento coletivo super simples. Volte e deixe seu corpo ficar curioso.)

Enquanto olha para a tela, você observa seu próprio olhar para a tela, você se torna consciente de estar consciente. Observamos e relaxamos cada impulso de se mexer, de trocar de aba, de se agitar. Pés no chão, ar entrando, ar saindo, olhar sereno.

Não assim... Tente chapar os pés no chão | Foto: John Beton
Não assim… Tente chapar os pés no chão | Foto: John Beton

Agora nosso desafio será escrever e ler sem que nossa mente saia dos pés e da respiração, sem perder contato com esses dois focos bem básicos, sem deixar que pensamentos nos levem para fora de nosso corpo, trancando nossa respiração e nos tirando do chão.

Se nos perdermos, basta pausar a leitura do texto (a escrita no meu caso) e voltar aos pés e à respiração, mesmo que tenhamos de fazer isso 90 vezes.

Topa o desafio? Ou melhor, seu corpo já topou o desafio?

Nossa mente exteriorizada

Mal acordamos e nossa mente já gruda em mensagens, vídeos, placas, números, fotos, pessoas, notícias, aparências de todo tipo. Colamos também em fenômenos internos: pensamentos, lembranças, projeções, névoas emocionais… Junto com nossa atenção, nossa respiração se obstrui (já ouviu falar de apneia causada por checagem de emails?), o fluxo das emoções se condiciona, todo o nosso corpo é envolvido por uma bolha, seja a de um namoro ou a de um trabalho.

Tudo parece OK até que alguma situação nos perturbe além do gerenciável — e aqui não preciso detalhar as várias crises da vida. Só quando dói é que começamos a olhar para dentro. Mas não sabemos como nem pelo que procurar! Estamos exteriorizados. Procuramos e sustentamos experiências internas manipulando condições externas.

Pés no chão, ar entrando, ar saindo, olhar sereno…

É assim que sabemos viver: o acesso ao mundo interno só parece possível de modo indireto, relaxando com alguma bebida ou sexo, se alegrando em alguma festa, sendo feliz por causa de uma narrativa que contamos a nós mesmos… Mexemos fora já que não sabemos mexer dentro.

A prova de que estamos operando assim é a incapacidade de voltar a respirar em meio a uma crise sem antes resolver o que pensamos ser o problema. Se alguém nos diz “Respire, relaxe, é isso o que você realmente quer”, nós respondemos: “Me ajude a reconquistá-la, me ajude a ganhar mais dinheiro…” Ou seja: “Me ajude a respirar e relaxar do único jeito que sei respirar e relaxar!”

Uma outra cartografia

Gravar macacos é fácil. Mas como gravar nossas vozes internas que distorcem a realidade? A voz do ciúme, da raiva...?
Gravar macacos é fácil. Mas como gravar nossas vozes internas que distorcem a realidade? A voz do ciúme, da raiva, do orgulho, da competição…?

Mas e se a gente começasse a viver com um olho fora e um olho dentro, percebendo a coemergência entre nossa atitude, nossa visão de mundo, nossas emoções, nosso corpo e as pessoas, os eventos, tudo o que experimentamos como se estivesse pré-definido, “lá fora”? E se a gente começasse a mapear as experiências internas que buscamos em cada movimento externo (viajar, trabalhar, gastar dinheiro, transar, exercitar o corpo, ouvir música, ler notícias)?

Estamos no momento de superar a ingenuidade. Ingenuidade de acreditar que chegamos a um mundo pronto, sem participar de cada fenômeno, sem responsabilidade por cada experiência que nos atravessa. Ingenuidade de achar que a compreensão do mundo externo é suficiente sem uma clareza direta do nosso mundo interno, desse mundo das aflições que nascem e vivem sei lá onde, dos pensamentos e não das sinapses, das relações e não do comportamento, da mente e não do cérebro, de tudo o que é não é mensurável pela ciência materialista, mas poderia ser investigado por outros métodos igualmente científicos, com instrumentos refinados de introspecção e contemplação.

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Pés no chão, ar entrando, ar saindo, olhar sereno…

O que hoje mal conseguimos nomear, esses aspectos sutis, isso de ver nossa namorada onde tem apenas carne e osso (ou órgãos, sinapses e átomos), isso de sentir raiva ou orgulho ou alegria, “isso” constitui nada menos do que 100% do mundo vivido! Nossa experiência é sempre uma experiência em primeira pessoa. Nunca vivenciamos diretamente a realidade estudada por físicos, químicos, biólogos, economistas… Não pensamos sinapses. Não vemos átomos ou órgãos, vemos pessoas. Não sentimos reações químicas, sentimos ansiedade ou carência. Não processamos ondas longitudinais e eletromagnéticas, ouvimos sons e vemos cores.

Nossa experiência em primeira pessoa é tão óbvia e tão imediata que esquecemos de reconhecê-la, mal conseguimos descrevê-la. Não é um mero detalhe: ignorar o mundo interno é deixar escapar a própria realidade, o aspecto mais profundo das coisas. Somos como um peixe sem saber o que é água.

Link YouTube | David Foster Wallace sobre o mundo interno da fila do super mercado

Precisamos olhar com mais calma para tudo o que hoje virou uma questão de crença. Se não nos apropriarmos dessa ciência que ainda engatinha, se não jogarmos luz e incluirmos os processos internos em nossa visão da realidade, estaremos sujeitos a todo tipo de picareta e charlatão pseudoespiritual com suas mil teorias.

A compreensão do nosso mundo interno pode transformar qualquer experiência humana em todos os âmbitos: turismo, educação, arquitetura, ciência, relacionamentos, artes marciais, saúde, ecologia, administração, artes, política, religião, jornalismo…

Podemos nos familiarizar, investigar, mapear, explorar nosso mundo interno movidos pela mesma curiosidade com a qual viajamos para outros países, experimentamos bebidas, testamos softwares, vemos filmes, criamos projetos sociais, pesquisamos remédios, observamos comportamentos, estudamos leis e equações, debatemos opiniões, ouvimos notícias desse mundo aparentemente externo.

Pés no chão, ar entrando, ar saindo, olhar sereno…

Sobre a série “Mundo interno”

Junto com as pessoas que participam do lugar e também com qualquer leitor ou leitora do PdH que quiser colaborar, vamos publicar uma série de textos com essa motivação de mapear nossos mundos internos.

A ideia é descrever em primeira pessoa, com algum tipo de introspecção e contemplação, processos que normalmente são abordados de modo exteriorizado. Podemos analisar nosso trabalho com a pergunta “Que mente estou cultivando ao fazer isso?”. Podemos investigar quais processos sistêmicos nos fazem adoecer bem antes dos sintomas, e o que nos ajuda a melhorar a saúde e o equilíbrio. Podemos iluminar qualquer realidade por dentro.

Em vez de testar mais um método de produtividade, como posso trabalhar diretamente com os processos sutis de distração, torpor e ansiedade? Se lá fora vejo uma balada, o que vejo quando olho para dentro (delas e de mim)? Qual o mundo interno de uma empresa? De uma propaganda? De uma avenida congestionada? De uma luta? De um site como o Facebook ou o PapodeHomem?  Quando aparentemente estamos aqui ou ali, onde estamos de verdade?

Pés no chão, ar entrando, ar saindo, olhar sereno…

Vamos aplicar às realidades sutis o mesmo fascínio que temos com documentários sobre o mundo externo, sobre cérebros, humanos se adaptando à natureza, animais, planetas e estrelas, bosons, quarks…

Sabe por que não temos uma série dessas em DVD? Porque não dá pra filmar a mente e o mundo interno... Precisaríamos de um time de artistas geniais e de cientistas comteplativos trabalhando juntos, algo raríssimo hoje em dia
Sabe por que não temos uma série dessas em DVD? Porque não dá pra filmar a mente e o mundo interno… Para descrevê-lo precisaríamos de um time de artistas geniais e de cientistas contemplativos trabalhando juntos, algo raríssimo hoje em dia

O que você deseja iluminar por dentro?

Nos comentários, conte onde está sua curiosidade.

Se você tivesse uma câmera que apenas captasse imagens sutis, internas, profundas, para onde a levaria? Em quais experiências da vida você gostaria de dar zoom, de ganhar clareza?

Pés no chão, ar entrando, ar saindo, olhar sereno…

Gustavo Gitti

Professor de <a>TaKeTiNa</a>