Um metro e oitenta centímetros envoltos em pele tesa e escura, linda toda e brilhante. Esse é o Sereno que, ao contrário de Tereza, deixou os olhos nascerem dez anos depois que o resto do corpo já tinha nascido e, com isso, sempre foi conhecido pelo olhar de criança nova. 

Quis a vida que ele emprestasse seu sorriso a todos os que estacionavam o carro em frente ao Edifico Simpatia, no Rio. Sereno é porteiro, cuida dos carros e dá oi para as pessoas. Fala grosso, mas nunca se exalta, um tenor de canto sonolento que avisa quando chega as correspondências, acusa os arranhões nos carros e faz também uns bicos de consertar ar condicionado nas trocas de turno. Imperturbável à sombra da bananeira, passa o dia ajudando quem precisa fazer baliza, dá informações a quem parece perdido e bate papo com quem está de bobeira. “Um copo d’água e um ouvido bom não se nega a ninguém”, ele vivia dizendo com aqueles dentes grandes e lustrados escancarados todo o tempo. 

As faxineiras do prédio iam ter com ele e toda a vez o Sereno baixava sua revistinha de palavras cruzadas para escutar também com os olhos. Sempre disponível, parecia que cada segundo dele trocava a cada vinte do nosso, trinta. Era um porteiro que tinha todo o tempo do mundo. A empregada descia, dava aquela olhadela na rua, voltava com o seu Sereno e desabafava do ônibus cheio, da pilha de louça, dos parentes do interior que estavam adoecendo. Outros funcionários dos pequenos comércios do quarteirão vinham fazer o mesmo, desafogar as angústias do salário atrasado ou das namoradas que iam embora. O Sereno? esse só escutava, dava atenção e tempo. 

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“Desacelera que o motor não aguenta esse tranco não”, ele costumava falar para os moradores que chegavam ainda acelerados do trânsito ou do trabalho. Era batata, não tinha como não colecionar afetos o Sereno. Ele dava conselhos amorosos para a molecada que ficava de cochicho na rua depois de sair do colégio e passava todos os panos para funcionar as saídas escondidas das adolescentes para ver namoradinhos na esquina. 

Quando fazia os turnos da noite, sempre dava pra ver o sereno caindo num choro ralo, miúdo. Umas lágrimas finas, aéreas. Tinha dia que era saudade, tinha vez que era por ter visto alguma notícia triste na tevê, o Sereno absorvia as pequenas dores do mundo e transformava aquilo tudo em água e sal.

Gotinhas que brilhavam contra a luz.

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados