Uma das gratas surpresas da última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi o documentário O Mundo de Corman:Aventuras de um Rebelde de Hollywood de Alex Stapleton, o qual narra a trajetória de Roger Corman. Chamado de rei dos filmes de baixo orçamento, produziu quase 400 obras (até o momento em que você lê esta matéria), tendo dirigido mais de 50 delas. Além disso, foi trabalhando para ele que nomes mais tarde importantes tiveram a sua primeira chance na indústria de cinema.
Roger William Corman nasceu em 1929 na cidade americana de Michigan e se formou em engenharia industrial na Universidade de Stanford. Mesmo com o diploma, ele começou a trabalhar como mensageiro na 20th Century-Fox e logo foi promovido a analista de roteiros. Decepcionado com o pouco crédito recebido, resolveu abandonar o emprego para estudar literatura na Universidade de Oxford. Voltou para Los Angeles em 1953 e deu início a sua longa carreira como roteirista, diretor e produtor.
Os primeiros trabalhos
Roger conseguiu vender seu primeiro script para a Allied Artists, uma empresa responsável por filmes baratos. O resultado foi o policial noir Highway Dragnet, lançado em 1954 e com direção de Nathan Juran (de Simbad e a Princesa, 1958). Corman ficou muito insatisfeito com o produto final e, a partir daí, decidiu ele mesmo financiar os seus roteiros.
Produzido com apenas 12 mil dólares, Monster from the Ocean Floor (Wyott Ordung, 1954), terror sobre uma ameba gigante que aterroriza banhistas incautos em um vilarejo mexicano, foi vendido para os distribuidores por 100 mil dólares e, graças ao enorme sucesso nas bilheterias (rendeu dez vezes o que custou), estabeleceu o nome de Corman na indústria. Com The Fast and the Furious (John Ireland e Edward Sampson, 1954), teve início um acordo de distribuição com a American Releasing, que depois mudaria seu nome para American International Pictures. A parceria entre Roger Corman e a AIP se tornaria uma das mais celebradas na história do cinema fantástico.
Corman estreou como diretor com Mulheres do Pântano, seguido pelos faroestes Cinco Revólveres Mercenários e Pistoleiro Solitário (todos de 1955) e até o final daquela década manteria uma média de seis obras lançadas por ano, experimentando com diversos gêneros (faroestes, policiais, dramas de prisão, ficção científica, terror, etc). Apesar de produzidos com pouco dinheiro, esses filmes se distinguiam dos concorrentes, fosse por causa do roteiro bem acabado ou da criatividade de Corman na realização dessas histórias.
Sua capacidade de filmar rapidamente, enxugando custos e ainda assim conseguir produzir uma obra de qualidade se tornaria lendária ao longo dos anos. Não se deve generalizar, confundindo cinema barato com o cinema ruim, de pouco ou nenhum valor. Mesmo com o acabamento precário de alguns filmes, Corman nunca permitiu que isso anulasse as chances de entreter o público.
Décadas mais tarde, Corman lançaria a sua autobiografia chamada How I Made A Hundred Movies In Hollywood And Never Lost A Dime (algo como “como eu fiz centenas de filmes em Hollywood e nunca perdi um centavo”). Pura enganação do título. Ele perdeu grana com The Intruder (1962), que tinha William Shatner no papel de um personagem odioso, um agitador que incitava o ódio racial em uma pequena cidade sulista norte-americana. Com uma trama ao mesmo tempo complexa e corajosa para seu tempo, o filme não foi capaz de recuperar os 80 mil dólares investidos. Ainda assim, é a obra que Corman diz ter mais orgulho dentre todas de sua longa filmografia.
Ainda na década de 1950, o diretor realizaria uma série de filmes de ficção científica cultuados, como It Conquered the World (1956) e Emissário de Outro Mundo (1957). No primeiro, um alienígena vindo de Vênus tenta conquistar a Terra com a ajuda de um cientista terrestre. O roteiro de Corman é bem feito, mas o que ficou marcado mesmo foi o visual do invasor venusiano, semelhante a um vegetal. A atriz do filme, Beverly Garland, teve muita dificuldade em expressar medo durante as filmagens, uma vez que se encontrava ameaçada por uma grande alcachofra de borracha cheia de dentes.
Já o Emissário de Outro Mundo traz outra ameaça alienígena, dessa vez um habitante do planeta Davanna. Disfarçado como um terrestre, ele precisa verificar se o sangue dos seres humanos é compatível com o da sua espécie. Usando um par de óculos escuros para esconder seus olhos brancos, o nosso invasor usa a visão para matar, queimando os órgãos internos e o cérebro das vítimas. Ganhou uma refilmagem em 1988, estrelada pela ex-atriz pornô Traci Lords e com produção executiva de Corman.
Rápido no gatilho (com as câmeras)
A rapidez de Roger Corman para filmar chegaria ao ponto máximo em Um Balde de Sangue (1959), que foi filmado em seis dias e conta a história de um artista maluco que passa a usar o sangue das vítimas para pintar quadros. Já em A Loja dos Horrores (1960), cujas filmagens demoraram apenas dois (!) dias, uma planta carnívora cresce sem parar e devora os clientes de uma floricultura para o desespero do pobre ajudante da loja.
Destaque para a presença de um jovem Jack Nicholson como um paciente masoquista que vai ao consultório dentário. Esta obra inspirou uma versão teatral musical em 1982, que por sua vez, se transformou em filme estrelado por Rick Moranis, Steve Martin e Bill Murray em 1986.
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A maioria dos filmes dirigidos por Corman fazem por merecer especial atenção, mas foi com as adaptações de obras escritas por Edgar Allan Poe que ele costuma ser mais lembrado. O ciclo é composto por oito filmes: O Solar Maldito (1960), A Mansão do Terror (1961), Obsessão Macabra (1962), Muralhas do Pavor (1962), O Corvo (1963), O Castelo Assombrado (1963), A Orgia da Morte (1964) e O Túmulo Sinistro (1964).
O magistral Vincent Price aparece como protagonista em todos eles, com exceção de Obsessão Macabra, enquanto que O Castelo Assombrado vende gato por lebre, já que é, na verdade, inspirado no livro O Caso de Charles Dexter Ward de H.P. Lovecraft. Com mais altos do que baixos, o ciclo costuma ser citado por críticos como a hora de avaliar o cinema de Roger Corman.
Tudo bem que se tratam de filmes famosos, mas os escribas deviam ter uma visão mais ampla da coisa e apreciar outras obras geniais como Dominados Pelo Ódio (1958) – com Charles Bronson como o gangster Machine Gun Kelly – e O Homem dos Olhos de Raio X (1963), em que Ray Milland interpreta um trágico cientista que, ao fazer experimentos para ampliar a percepção da visão humana, acaba evoluindo tanto esse sentido que termina o filme contemplando no centro do universo o “olho que vê a todos nós”. Nos anos 90, circulou em Hollywood um projeto para uma nova versão do filme, que chegou a interessar Tim Burton.
As crias de Corman
Roger Corman gostava de agregar em sua equipe jovens dispostos a trabalhar muito e, geralmente, em diversas funções. Esses entusiastas até podiam não ganhar muito dinheiro, mas o valor era convertido em experiência. Um dos primeiros foi Francis Ford Coppola, responsável no futuro pela trilogia O Poderoso Chefão e A Conversação, entre outras obras-primas.
Coppola já havia dirigido um filme softcore em 1962 (Tonight for Sure) e agora, contratado como assistente de Corman, tinha como tarefa dublar e reeditar uma produção soviética de ficção científica chamada Nebo Zovyot (Mikhail Karzhukov e Aleksandr Kozyr, 1962), que seria distribuída nos EUA por intermédio de Corman. Lançado como Battle Beyond the Sun, a versão remontada possuía o acréscimo de novas cenas dirigidas por Coppola, como aquelas que mostram dois monstros espaciais, que por meio de uma sugestão de Roger Corman, deveriam lembrar uma genitália masculina e uma feminina.
Os trabalhos seguintes de Coppola para Corman seriam Dementia 13 (1963) – um dos muitos filmes de suspense que surgiram na onda de Psicose (Alfred Hitchcock, 1960) – e Sombras do Terror (1963), que foi, na verdade, um trabalho em conjunto de Roger Corman e vários de seus colaboradores. Decidido a reaproveitar os cenários de produções como O Castelo Assombrado, que ainda não haviam sido desmontados, ele filmou algumas cenas com Boris Karloff e outros atores andando pelos sets, sem ter propriamente um roteiro pronto.
O material foi depois entregue a Francis Coppola, Monte Hellman, Jack Hill, com cada um deles escrevendo novas linhas do roteiro e filmando mais cenas. Até Jack Nicholson, o protagonista da história, contribuiu com a tarefa tentando criar alguma coerência naquilo tudo.
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Importando filmes
Novamente usando da tática de reedição de uma ficção produzida na URSS, Corman mandou Peter Bognadovich transformar Planet Bur (Pavel Klushantsev, 1962) em Voyage to the Planet of Prehistoric Women, lançado em 1968. No mesmo ano, Bognadovich dirigiria Na Mira da Morte para Corman que, na ocasião, ainda tinha Boris Karloff sob contrato por mais dois dias e precisava que alguém conseguisse criar um filme com o velho ator e não estourasse o orçamento. Pouco tempo depois, já distante do mentor, Bognadovich ganharia reconhecimento mundial com sucessos como A Última Sessão de Cinema (1971) e Essa Pequena É Uma Parada (1972).
Após pegar uma carona na onda de filmes de motoqueiros (Anjos Selvagens, 1966) e psicodélicos (Viagem ao Mundo da Alucinação, 1967, que tem o roteiro assinado por Jack Nicholson), ambos estrelados por Peter Fonda, foi então que Roger realizou seu sonho de dirigir um filme sobre aviões, pois ele havia servido a Força Aérea Americana durante a 2ª Guerra Mundial. Águias em Duelo (1971) seria um ponto de transição na carreira de Corman, e ele não dirigiria mais nada até 1990, quando fez Frankenstein, O Monstro das Trevas, uma mirabolante versão do clássico de Mary Shelley, com um cientista do futuro e viajante do tempo (John Hurt) encontrando-se com o Barão Frankenstein (Raul Julia).
Ao descobrir que Ingmar Bergman estava com dificuldades em arrumar distribuição para Gritos e Sussurros (1972) nos EUA, Corman correu para ajudá-lo – admirador do cineasta sueco, ele havia homenageado O Sétimo Selo (1957) em A Orgia da Morte. Corman resolveu a situação lançando Gritos e Sussurros junto de outro filme, em um programa duplo destinado aos cinemas drive-in. O mesmo esquema foi feito para Amarcord (1973) de Federico Fellini e outras produções europeias assinadas por diretores de renome e que Corman adquirira os direitos de exibição.
Parando de dirigir, mas não de fazer filmes
Mesmo abandonando a cadeira de diretor, Roger Corman continuou produzindo filmes através da sua empresa New World Pictures, ajudando a deslanchar a carreira de nomes até então nada conhecidos. Martin Scorsese dirigiu Sexy e Marginal (1972) e Jonathan Demme assinou Celas em Chamas (1974), um legítimo exemplar do subgênero WIP (Woman in Prison). Curtis Hanson, ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado por Los Angeles – Cidade Proibida (1997) fez Sweet Kill (1973), enquanto que Ron Howard, de Uma Mente Brilhante (2001) e O Código Da Vinci (2006), estreou como diretor em 1977 com o longa Grand Theft Auto, que teve Roger Corman como produtor executivo.
Entre outras produções de Corman nos anos 70, posso destacar ainda o divertido Corrida da Morte – Ano 2000 (1975) de Paul Bartel. Aqui temos David Carradine e Sylvester Stallone (antes de Rocky Balboa) como dois corredores participantes de uma competição onde se pontua atropelando inocentes pedestres, algo como uma fusão do desenho Corrida Maluca com o game Carmageddon. Refeito recentemente como Corrida Mortal em 2008, a nova versão não teve culhões para manter todo aspecto subversivo e politicamente incorreto do original.
Roger Corman continuou se inspirando em sucessos alheios e criando obras como Piranha (Joe Dante, 1978), sátira de Tubarão (Steven Spielberg, 1975) levada a sério e escrita por John Sayles (Lone Star – A Estrela Solitária, 1996), ou Mercenários da Galáxia (Jimmy T. Murakami,1980), engenhosa ficção científica que copia Guerra nas Estrelas (George Lucas, 1977) e acrescenta elementos de Os Sete Samurais (Akira Kurosawa, 1954). A direção de arte e alguns dos efeitos visuais ficaram a cargo de James Cameron, futuro diretor de Titanic (1997) e Avatar (2009).
A inteligência de Corman o ajudou a perceber que as regras do jogo mudavam. Os pequenos cinemas e os drive-in estavam com os dias contados. Os mesmos tipos de filmes que ele produzia há mais de vinte anos com orçamento pequeno agora eram feitos por grandes estúdios que gastavam milhões de dólares. Roger Corman enxergou um futuro com blockbusters barulhentos e majors que controlavam redes de distribuição de cinema. Não que ele fosse contra, mas era claro que não pertencia a este mundo.
Vendeu a New World Pictures em 1983 para montar uma nova empresa, a Concorde – New Horizons, que se mantém na ativa até os dias de hoje, lançando principalmente filmes direct-to-video (filmes que não passam pelo cinema, saindo direto em DVD, no iTunes e etc). Comparadas ao período áureo de Corman, poucas foram suas produções nas últimas duas décadas que merecem algum destaque. Uma delas seria Carnossauro (Adam Simon e Darren Moloney, 1993), insana chupinhação de Parque dos Dinossauros (Steven Spielberg, 1993) que apresenta um vírus mutante que faz com que mulheres botem ovos de dinossauro!
Ainda na ativa!
Roger Corman continua trabalhando normalmente no alto de seus 85 anos de vida. Em 2006, quase dirigiu um episódio da série Mestres do Horror, mas se viu obrigado a desistir por causa de problemas de saúde. Por sorte, ele continua cheio de vitalidade, aproveitando todo o sucesso acumulado ao longo de décadas. Pode ainda viver para testemunhar seus pupilos e antigos associados se transformarem em astros e diretores famosos em Hollywood.
Reverências e homenagens a sua pessoa nunca param e de vez em quando, ele próprio costuma aparecer como ator em filmes, como em Looney Tunes – De Volta à Ação (Joe Dante, 2003), onde é visto interpretando a si mesmo nos estúdios da Warner Bros, dirigindo um filme do Batman.
Tendo em vista como essas últimas aventuras do Homem-Morcego padecem de uma seriedade forçada, imagino se o velho Corman não seria de fato uma opção bem melhor.
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