Há em nós uma puta vontade de transformar e participar das coisas nas quais tocamos. Um desejo latente de dobrar, rabiscar, colorir, interagir, misturar, entender, entrar e sair, escapar e se conectar. Isso acaba se tornando uma habilidade que nos torna mais capazes de envolver as pessoas com esse olhar utilizando as ferramentas das quais dispomos. No dia 23 de outubro, vi um homem chamado Robert Plant fazer isso com música.

Pra lá com essa coisa de que o Robert Plant é o ex-vocalista do Led Zeppelin. Chega a ser lamentável que as pessoas tenham comprado o ingresso para o show pensando em ver esse cara que morreu em 1980, junto com o John Bonham e sua ex-banda. É muito triste que as pessoas busquem o retorno a um momento – riquíssimo, sim – que já está soterrado por uns 40 anos de história.

Este cara já subiu as escadas

As pessoas olham o Robert Plant de hoje, com as rugas que agora se desenham em seu rosto, o corpo já não tão altivo e imponente, a voz, rouca pelos excessos – de gritaria, de drogas, de álcool – e procuram a juventude, a histeria, o peso. Procuram Led Zeppelin e pouco se relacionam com o que há de eternamente jovem, atual, denso e cortante na bruxaria que ele realiza quando toca.

Há uma avidez por nostalgia tão grande que se esquecem do quanto é raro ouvir músicos como Juldeh Camara, nascido na África Ocidental, responsável por adicionar uma camada de voz tipicamente africana e tocar instrumentos que talvez nós nunca ouvíssemos sem a oportunidade de vê-lo excursionando com o Robert Plant.

Ele, um verdadeiro xamã, um Griot – um contador de histórias da Gâmbia – faz recitações no dialeto Fulani e toca ritti, uma espécie de violino rústico de uma corda só.

O velho Robert reuniu também os ex-membros do que, para mim, foi a sua melhor banda do período solo, o Strange Sensation – responsável pelos discos Dreamland e Mighty Rearranger. De lá veio o baixista Billy Fuller e os guitarristas Justin Adams e Liam “Skin” Tyson, além do tecladista John Baggott – que toca ao vivo com o Portishead e já tocou baixo em um disco do Massive Attack.

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Um time que tem em sua raiz a familiaridade com o rock clássico, blues, variações rítmicas pouquíssimo usadas em canções do gênero e o uso de escalas orientais. É bastante nítida a boa relação que este grupo tem com o estilo do próprio Robert Plant, que sempre foi famoso por sua conexão com a África e o oriente, de um modo geral.

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Mesmo as velhas músicas da ex-banda que ele talvez se veja obrigado a tocar por pressão dos fãs são totalmente reformuladas, a ponto de ficarem quase irreconhecíveis. Elas foram contextualizadas, adaptadas, para também se relacionarem com isso que ele faz agora.

A mistura de todos estes elementos com a postura cortante, precisa e extremamente polida do Robert Plant de hoje gera um resultado com um grande potencial para nos envolver pelo subsolo da nossa capacidade de apreciação musical.

Robert Plant não está mais preocupado em agradar os fãs do Led Zeppelin que querem algumas horas de entretenimento. Hoje ele está criando conexões com a nossa riqueza ancestral, dialogando com a mitologia e as origens do blues e do próprio rock, indo muito além das referências óbvias.

Ele está escavando e entendendo por dentro a música e a cultura que deu origem a todo o circo cultural que nós vivemos. Mais do que isso, ele está juntando o que temos de melhor na música moderna – a tecnologia, a facilidade de disseminar informação, viajar, gravar e distribuir – com o que há de mais verdadeiro na música, memórias e sensações dos seres que viveram antes de nós.

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Luciano Ribeiro

Cantor, guitarrista, compositor e editor do PapodeHomem nas horas vagas. Você pode assistir no <a>Youtube</a>