não existe nada tão invisível quanto um monumento, escreveu o austríaco robert musil. 

apesar de feitos para chamar atenção, existe neles algo que repele a atenção. é possível andarmos pela mesma rua por anos, reparando em cada loja, cada buraco, cada placa… e um dia nos surpreendermos com um gigantesco monumento de metal fundido que nunca tínhamos reparado.

um dia, depois de mostrar o rio de janeiro para uma amiga paulistana, perguntei suas impressões e ela disse:

"nunca vi tanta estátua junta na minha vida."

e eu, carioca nascido e criado, nunca tinha percebido.

de fato, a única cidade do mundo com mais estátuas públicas que o rio de janeiro é paris.

a história do brasil está contada nessas esculturas.

abaixo, algumas delas.

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baleia?

angelo venosa, 1990; no final da praia do leme, copacabana.

uma mesma obra, nenhum título, diferentes interpretações:

na praça mauá, onde foi instalada em 1990, no terreno onde seria construído o rio branco um, eram algemas.

na praia do leme, para onde foi em 1998, os moradores a apelidaram de baleia.

não sei porque encalharam essa baleia aqui na calçada e não nas areias da praia, se pergunta um publicitário.

o artista afirma não querer impor interpretações, apenas criar um objeto que fizesse parte do dia-a-dia das pessoas. que se afeiçoassem à obra com o carinho que dedicam a uma árvore ou a um banco de praça. (mas será que as pessoas ainda se afeiçoam às árvores e bancos de praça?)

pelo contrário, a obra gerou polêmica: alguns moradores do leme se rebelaram contra ela, disseram que era feia, que atrapalharia a circulação dos carrinhos de bebê.

fizeram um plebiscito: a baleia ganhou.

* * *

hoje, a baleia está placidamente nadando ao lado do ponto final de diversos ônibus.

motoristas, cobradoras, fiscais sentam-se ali, em torno dela, descansam e comem, afrouxam as gravatas e tiram os sapatos, olham o mar e conversam a vida.

um deles me disse que nunca tinha reparado na estátua: muita mulher bonita passando, explicou.

outro reclamou que era um desperdício de patrimônio público colocar uma estátua assim, no meio da rua, sem identificação, sem dizer nada! sem utilidade nenhuma! de que adianta?

respondi que havia uma plaquinha de identificação, sim, com o título da obra, nome do artista e a data, mas que o título era "sem título".

nenhum deles conhecia o novo apelido cetáceo da escultura. mas quando perguntei o que poderia significar, todas as sugestões foram marítimas: uma espinha de peixe? uma escama de peixe?

nos luaus da praia do leme, nas horas retesadas da madrugada, sempre aparece um ou outro casalzinho transando na baleia, encostados nela, encobertos por ela, escondidos em suas entranhas.

quantos carioquinhas (ou francesinhos ou chinesinhos; afinal, é uma cidade turística!) não teriam sido concebidos dentro da baleia?

se tiverem dúvidas quanto ao nome, sugiro jonas.

nenhum deles diria que a baleia não serve para nada.

(angelo venosa, 1990; no final da praia do leme, copacabana. obra restaurada pela gafisa; vencedora de concurso promovido pela joão fortes engenharia.)

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corneteiro

ique, 2005; na esquina da garcia d'ávila com visconde de pirajá, em ipanema.

1822. guerra de independência. nas ladeiras de pirajá, em salvador, brasileiros enfrentam portugueses. o comandante brasileiro, prevendo a derrota, manda o corneteiro luiz lopes dar o toque de retirada. o corneteiro, por engano ou por bravura, dá o toque de cavalaria, avançar e degolar. para a surpresa de brasileiros e portugueses (nem havia cavalaria presente!), os brasileiros voltam à carga e ganham a batalha e, depois, a guerra.

no século XXI, a batalha é pelo corneteiro.

a cariscultura, criada pelo cartunista e escultor ique, foi colocada em uma calçada de ipanema, bem na rua visconde de pirajá – que ganhou esse título nobiliárquico por ter sido o comandante da vitoriosa batalha de pirajá.

mas não iria ficar assim: artistas plásticos fizeram um abaixo-assinado contra a proliferação de estátuas de mau-gosto nas ruas do rio e, especialmente, contra o corneteiro. a cidade virou a casa da mãe-joana, disse um deles. os artistas criaram uma comissão na prefeitura, recomendaram a retirada do corneteiro… mas ele não saiu. éramos fantoches ali, disse outro artista. as estátuas são feias, sem graça. melhor pôr um playmobil, arrematou.

no fim, o corneteiro ganhou também sua segunda batalha. continua nas ruas de ipanema, armado de sua corneta.

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drummond

o poeta carlos drummond de andrade gostava de se sentar em um banquinho no posto seis.

agora, no mesmo banco, em bronze, tornou-se um verdadeiro anfitrião de copacabana: turistas de todo o mundo fazem fila para sentar-se ao seu lado e tirar fotos, bater papo, contar problemas, buscar ajuda.

um vendedor de milho, espertamente posicionado ao lado do poeta, vende pamonha aos suplicantes. de vez em quando, ele me conta, as pessoas vêm andando pelo calçadão, veem o drummond e gritam: está aqui! achei! achei!

uma menina de uns cinco anos corre para se agarrar ao poeta e a mãe comenta: mas ela tem medo de tudo!

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outra moça posa para fotos abraçada no poeta e diz: lá em minas, eu costumava vender balas embrulhadas nos poemas dele. aquele recomeçar, sabe? que fala do papel de bala? (não tive coragem de lhe revelar que essa poesia não é do drummond.)

uma estátua viva faz poses ao lado da estátua não-viva. quando lhe dão algum dinheiro, presenteia a pessoa generosa com uma poesia do drummond em um cartãozinho.

em um dos breves interlúdios da intensa vida social do poeta, um casal de romenos senta ao seu lado para apreciar o mar. em breve, começam a aparecer novas pessoas querendo posar com a estátua. de costas, os romenos nada percebem.

para quebrar o impasse, pergunto se sabem de quem é aquela estátua. respondem que não. explico que é um dos maiores poetas brasileiros, segundo monumento público mais visitado da cidade, atrás somente do cristo redentor, e que têm várias pessoas na fila para tirar fotos com ele.

os romenos olham para trás e veem toda aquela movimentação: pessoas ajeitando os biquínis & penteando os cabelos, regulando as câmeras & esperando sua vez.

um pouco constrangidos e muito surpresos, eles se levantam rapidamente, mas não vão embora.

ainda ficam ali um bom tempo, testemunhando aqueles rituais de carinho poético e registro fotográfico, curiosos e atentos, como se buscando encontrar o que aqueles brasileiros tanto viam de especial naquela estátua tão comum.

* * *

de dia, tiram fotos com o poeta. à noite, tiram seus óculos de bronze.

ao longo dos anos, verdadeira guerra fria, os óculos vão sendo roubados e repostos. às vezes, roubados poucas horas depois de repostos. não sei como ainda não roubaram a estátua, diz a aposentada rosa maria.

(em havana, na praça john lennon, a estátua do músico também teve seus óculos repetidamente roubados. agora não mais fixos, os óculos ficam nos bolsos de vigias: para tirar fotos, basta pedir e os recolocam. de madrugada, sem óculos, a estátua fica cega.)

a prefeitura pensou em instalar câmeras. cada reposição de óculos custa três mil reais em mão de obra, mas o valor de revenda dos óculos em um ferro-velho nem chegaria a quinze reais. perto dali, a menos de cem metros, uma cabine da polícia militar. ninguém vê nada: faltam óculos.

enquanto isso, eternamente de costas para o mar, drummond tem uma vida social intensa mas nem sabe se está dando onda ou não.

(leo santana, 2002; na avenida atlântica com rainha elizabeth, copacabana. patrocínio varilux/crizal e prefeitura.)

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dama

"serena dama do mar", luiz figueiredo, 1988; na avenida atlântica com rainha elizabeth, copacabana.

quase em frente ao drummond, tentáculos flutuando em um quase abraço, a lânguida e serena dama do mar protege a colônia de pescadores z-16, mais antiga que o próprio bairro de copacabana.

apesar de não tão popular quanto o poeta mineiro, tem seguidores fiéis: aos seus pés (tentáculos?), sempre podem ser encontrados buquês de flores, ofertados não só por trabalhadores do mar, mas também por devotos de iemanjá.

durante muitos anos, conta o atendente do centro cultural e recreativo do posto 6, ali ao lado, onde os velhinhos do bairro jogam cartas e dominó em frente à praia, a camélia flores deixava ali um buquê de rosas brancas toda semana. quem encomendou, ninguém sabe.

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millôr

ali perto, outro escritor, outro banquinho, com uma pequena diferença.

millôr, autor da frase "o pôr do sol é de quem olha", já tinha na ponta da língua a encomenda:

"se quiserem me homenagear, façam um banquinho de onde o pessoal possa curtir o pôr do sol no Arpoador"

morreu e, pouco mais de um ano depois, está lá o banquinho, no seu ponto preferido.

nos meses de verão, dá pra ver o sol se pôr no mar.

(millôr, jaime lerner, 2013, no arpoador.)

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zumbi

em 20 de novembro de 1695, quando os bandeirantes paulistas finalmente destruíram o quilombo dos palmares, foi apresentada ao governo colonial a cabeça do líder dos quilombolas: zumbi.

não sabemos quem era. de onde veio. nem se zumbi era seu nome próprio ou se era sempre o título dos líderes do quilombo.

de concreto, só havia aquela cabeça, ali, apodrecendo.

hoje, essa cabeça, com oitocentos quilos e sete metros de altura, está na praça onze, centro do rio, berço do samba.

mas já é outra cabeça. 

como não há registros da aparência de zumbi, a estátua é uma réplica da cabeça de um rei nigeriano do século XII.

a cabeça duplamente apócrifa, aparência de uma pessoa real para representar outra que talvez não tenha existido, serve a um objetivo real e importante: transformou-se em símbolo da luta antirracista e ponto de encontro de manifestações e passeatas do movimento negro.

na foto, um evento do educafro, ong cujo objetivo é ajudar jovens pessoas negras e pardas a ingressar no ensino superior.

(zumbi, joão figueiras lima, 1986, praça onze.)

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todas as fotos são da fotógrafa claudia regina.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu