Não, não estamos falando da baixa prostituição (nem sei se isso é regionalismo datado próprio aqui do sul “ir na zona”).

Já escrevi sobre Stalker e mantenho alguns trechos sublinhados do excelente livro de Geoff Dyer, que analisa o filme cena por cena, incluindo reflexões pessoais do autor.

Embora seja um de meus filmes favoritos, não gosto dele do mesmo jeito que gosto de outros filmes. Não se compara com nenhum outro – é uma mistura de poesia com artes plásticas, mas que funciona extraordinariamente bem em certa dimensão de realidade cinematográfica alterada. Algumas vezes aprecio cinema de arte, ou papo-cabeça, mas é muito difícil que não me incomodem pela pretensão – há mais filmes de entretenimento, honestos e bem feitos, que se pode apreciar, do que filmes cabeçudos que funcionam sob todos os aspectos.

Mas Stalker é, efetivamente, um objeto artístico à parte.

É quase um pequeno retiro – sempre levo uns dois dias para assistir, e passo vários outros retornando mentalmente aos temas do filme. E quase todo ano assisto de novo. Se você não o vai assistir após ler uma peça de hype como essa que estou escrevendo – ou mesmo nesse caso, possivelmente, nas duas ou três primeiras tentativas – é quase certo que você vai desistir do filme antes dos personagens chegarem à Zona. Para os “não iniciados”, Stalker é o filme mais chato do universo.

É difícil explicá-lo em poucas palavras sem entrar em seu contexto de produção.

A história na qual Stalker é baseada é instigante. “Piquenique à Beira da Estrada” é um conto de Arkady e Boris Strugatsky, escrito em 1971. Um evento chamado de “a visita” fez algum governo fechar mais ou menos seis territórios de cinco quilômetros quadrados, que estão cheios de fenômenos e artefatos estranhos. O título é uma referência à ideia de que alienígenas fizeram o tal “piquenique” e deixaram “farelos” – sem nem chegarem a perceber os seres humanos, que como insetos, se fascinam com aqueles restos incompreensíveis, alguns deles perigosos.

O Stalker – “espreitador”, palavra hoje mais associada com aquele que fica olhando seu perfil no Face, ou o seguindo pela rua porque o acha gostoso – tanto no livro quanto no filme, é a figura do “especialista em Zona”, um renegado que consegue passar a segurança e sabe se virar lá dentro. Se você está interessado em algum artefato (alguns deles tem efeitos claramente benéficos), você contrata um Stalker e faz uma incursão.

A história original já não é ficção científica usual, contém um grau de metáfora existencial que mesmo considerando os movimentos surrealistas e psicológicos da FC dos anos 60, não é comum.

Mas vamos ao contexto.

O governo da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas já havia encomendado uma ficção científica de Tarkovsky, o excelente Solaris. Tarkovsky era aquele tipo “gênio torturado da mãe Rússia” – aquele estereótipo de artista de mão pesada que “vem do frio” – e não estava nem aí para entrar numa competição com Stanley Kubrick, muito menos se envolver com o que provavelmente via como subliteratura moderninha. Mas os dirigentes do “setor de fomento à cultura” pensavam diferente: se o ocidente estava fazendo bons filmes de ciência-ficção, os comunistas precisavam fazer ainda melhor. Detalhes pequenos como orçamento ou tecnologia para efeitos especiais, deixemos isso de lado! Em Solaris o futuro para camponês russo ver é um túnel em Tóquio, em longa cena.

Mas, para ter ideia da maestria de Tarkovsky, nada disso estraga o filme. Ele é tão esteticamente sofisticado quanto 2001, e tão “pirado” ou filosófico quanto.

Stanislaw Lem, o autor do livro em que Solaris foi baseado, é um dos maiores escritores da FC, e seus livros contém muita crítica social, psicológica e existencial. Não são uma space opera feito Guerra nas Estrelas, vamos dizer assim (ainda que o fanboy ache profundidade no pastiche de religiosidade e mito que está ali – e que de fato é o segundo maior valor do filme, fora nos fazer comer pipoca) – muito pelo contrário, são a nata da FC literata e pensante.

Mesmo assim, Tarkovsky não estava nem aí para FC, Dostoievsky cinematográfico que era. O problema é que a verba só vinha para isso. Mas, o que resta é fazer limonada, não é mesmo?

E que limonada. O Solaris de Tarkovsky cobre a aposta de Lem e entra com tudo – adiciona muitas outras camadas de reflexão. Mesmo feito meio a contragosto, Solaris foi um sucesso. Não de bilheteria, no ocidente, é claro – mas chegava a dar para desconfiar que a arte na União Soviética prosperava em algum sentido.

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Seis ou sete anos depois, a mesma coisa. O governo só deu verba para fazer Ficção Científica, naquela inimaginável “corrida cinematográfica” – espelhando a corrida espacial e armamentista com Tio Sam –, e assim nasceu Stalker.

Mas se Solaris foi relativamente, pelo menos em comparação, uma produção fácil, fazer Stalker foi, guardando a metáfora-metanoia do filme, tão perigoso e fascinante como entrar na Zona.

Com metade do filme pronto, e possivelmente mais de metade da verba consumida, um Laboratório de Revelação do Estado cometeu algum erro no processo de revelação, e perdeu os originais. E aí, ligar para o SAC? Imagine o órgão financiador pressionando o pobre artista, e o responsável do laboratório, provavelmente algum “cargo de confiança”, dando de braços e respondendo a ninguém… 1 a 0 pros ianques, porque embora produtores tomassem conta dos filmes e os picotasse, retirando o diretor de sua cadeira, e a tensão econômica produzisse muitas vezes o mínimo denominador comum em termos culturais, pelo menos dava para processar o laboratório!

É um erro tão crasso que muita gente desconfia de censura – alguma coisa no filme incomodou alguém, e o filme teria sido destruído.

De qualquer forma, Tarkovsky, sem opção, recomeça a filmar do zero.

Stalker não tem nenhuma produção. Os atores vestem algumas roupas surradas e o interior de algumas espeluncas soviéticas é mostrado em sépia no início e no final do filme. Depois é só mato e uma usina abandonada. E diálogo denso, muitas vezes indecifrável.

Não parece muito interessante, não é mesmo? E por isso eu digo, o filme só funciona quando você penetra na Zona junto com os personagens. O filme recria a Zona, até num aspecto que não está no livro, mas que Tarkovsky soube muito bem aproveitar: nossa falta de fé.

Digamos que, com esse artigo, eu seja o seu Stalker da Zona específica que é o filme Stalker, e você leia esse hype todo, eu dizendo o quão fantástico é esse filme, mas você assiste e não vê nada nele. Espelhando isso, os personagens no filme, repetidas vezes, também duvidam da Zona e do Stalker.

Tarkovsky é nosso Stalker na tela, duvidamos de sua integridade artística – e de fato alguém pode sair do filme achando que foi a maior perda de tempo por que já passou.

Mas, com paciência e muito cuidado, aos poucos vamos coletando artefatos cognitivos – um pedaço de diálogo, alguma cena impressionante. Depois de lá pela terceira vez que você vê, curiosamente certas cenas começam a ganhar impacto, e o que parecia uma produção pobre, impensada – algo para entregar para o financiador e dizer “toma aí o filme, eu fiz o que eu pude” – surge como uma obra-prima.

E eu digo isso porque eu tento ver esse filme desde a época em que era uma locação de fita dupla em VHS. Levei pelo menos uns 10 anos para começar a gostar do filme.

E uma hora, de fato, ele se torna um quarto que realiza desejos. É arte como nenhuma outra – nada no cinema chega perto, é extremamente peculiar – só nisso já haveria valor. O Stalker é um santo, que nos revela a beleza e o poder da zona.

E seu perigo. Hoje em dia a zona de exclusão em Chernobyl é chamada de Zona, e algumas pessoas associam certos aspectos do filme com uma crítica velada de Tarkovsky aos acidentes nucleares, e as duas enormes zonas de exclusão que já existiam na União Soviética em 1978: o desastre de Kyshtym, em Chelyabinsk, e uma área enorme no Cazaquistão fronteira com o Uzbequistão onde uma bomba de hidrogênio foi detonada.

De fato, nas cenas finais do filme são vistos alguns reatores nucleares em operação próximos a cidade onde o Stalker vive. Também há efeitos da Zona ligados a estranhas mutações.

A Zona, de todo modo, é uma metáfora para a audácia humana, em tudo que ela tem de positivo e negativo. E, é preciso dizer, todos os atores envolvidos no filme ficaram doentes devido a uma espuma química presente na usina (não nuclear) abandonada utilizada no filme. Todos morreram alguns anos depois, possivelmente de complicações decorrentes dessa contaminação. Inclusive Tarkosvky.

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em <a>tzal.org</a>."