Não, esse não é um texto sugerindo que você saia na rua quebrando tudo, ou que você pegue uma espingarda e saia para caçar no meio da floresta. 

O nosso planeta tem 4,6 bilhões de anos. Nós, Homo sapiens, estamos por aqui há mais ou menos duzentos mil anos. Nos últimos doze mil começamos o processo de "domesticação" nos assentando a partir da agricultura. 

Do século XIX pra cá, nos tornamos “realmente civilizados” com o advento da revolução industrial. Passamos a nos aglomerar em locais que eventualmente se tornaram cidades e a tal “civilização”, que trouxe o conceito de progresso, também trouxe a ideia de que ser selvagem é ser inferior, ignorante, atrasado. 

O “bem sucedido” passou a morar na cidade, trabalhar numa fábrica – e depois num escritório – ter uma casa de cimento, ganhar dinheiro. 

 

As mudanças mais bruscas aconteceram somente nos últimos 180 anos! Ou seja, em menos de 0,09% da nossa história!

Mas, não, eu não estou falando isso para você começar a se sentir culpado. E não, também não estou falando que você deveria largar tudo, se mudar pro campo e começar a trabalhar com agricultura. A não ser que você realmente queira isso, não é bem essa a proposta.

O progresso nos trouxe muitos pontos positivos. Afinal de contas, não era tão legal ficar vivendo constantemente com medo de ser engolido por um leão. 

 

Porém, ele também nos trouxe condicionamentos que nos afastaram da forma como a espécie sempre viveu: conectada à terra e à natureza. 

O processo de reconexão com a natureza – rewilding – começa por um processo de "desdomesticação" e "descondicionamento". Primeiro, ficando mais conscientes do quanto estamos condicionados e, segundo, reintroduzindo e se reconectando com o nosso lado selvagem na nossa vida atual.

Como de fato podemos fazer isso?

Podemos começar de duas formas:

  1. Saindo do piloto automático da vida… 

… e fazendo alguns questionamentos que nos trazem mais pra perto do nosso eu verdadeiro, como por exemplo:

  • Quem sou eu? 

  • que eu realmente gosto de fazer e o que eu faço influenciado pelo meu ambiente? 

  • Por que eu sigo certas regras? 

  • Eu realmente preciso/quero fazer uma faculdade ou ter o emprego que eu tenho? 

  • O que me faz feliz? 

  • Se eu não precisasse de dinheiro o que eu escolheria fazer na vida? 

  • O que moldou/molda as minhas crenças e o que eu penso sobre o mundo? 

 

Fazendo perguntas assim, mesmo que inicialmente não tenhamos respostas claras, podemos começar a trazer um pouco mais da nossa verdade interna para nossa realidade e talvez assim possamos entender mais sobre a nossa visão de mundo e saber se ela ainda serve à nossa vida e à dos outros seres do planeta. 

2)Reconstruindo uma relação com a natureza …

… e com os seres não-humanos de uma maneira intencional. 

  • O que eu sei sobre o planeta onde eu vivo? 

  • O que eu sei sobre o pedaço de terra onde eu moro? 

  • O que eu sei sobre os seres não-humanos que me cercam? 

 

A ideia é estar mais na natureza e trazer a realidade dos não-humanos (animais e plantas, por exemplo) para mais perto da nossa realidade.

Temos uma visão muito antropomórfica, ou seja, centrada só nos humanos. Com isso tendemos a focar e nos preocupar somente com a nossa espécie.

Esse distanciamento trouxe muitas consequências para o planeta. Estamos extinguindo muitas espécies e correndo o risco de extinguir a nossa própria. Um dos motivos que nos leva a isso é a falta de relação e empatia com os outros seres e com a própria Terra, que é um superorganismo vivo.

Tá, mas como eu faço pra começar essa tal relação com a natureza? 

 

Infelizmente, não existe uma receita de bolo. A maioria de nós tem dificuldade de relacionar-se com a natureza e não sabe muito bem por onde começar.

Estamos todos experimentando. O melhor que podemos fazer é nos inspirar nos povos mais selvagens, sem a intenção de copiar 100% seus padrões de comportamento, mas tentando entender melhor como podemos intensificar nossa relação com a natureza.

Aqui vão algumas dicas com diferentes níveis de dificuldade. 

Nível 1: Experimente!

Para quem quer experimentar alguma coisa, mas ainda não se sente pronto para nada muito radical:

Já parou para perceber os pássaros que existem na sua cidade? Que sons eles fazem? Como eles são fisicamente? Você sabe de qual espécie eles são? Tente desenhar algum deles. 

Foto de Sebastião Salgado

Dê uma volta por alguma área mais natural perto da onde você mora, um parque, uma floresta, uma praia mais deserta. Se apresente para os seres não-humanos que existem por lá (Seja uma árvore, um pássaro, insetos, flores, rios, oceanos, etc.) da forma que achar mais adequada.

Você já ouviu falar de Terapia Florestal ou Shinrin Yoku? Neste artigo aqui falamos um pouco sobre isso.

Procure alguém que esteja oferecendo caminhadas na natureza com esse foco.

Leia também  Pequeno manual de sobrevivência em contextos coletivos

Nível 2: Aprofunde-se

"Eu já estou meio selvagem, gostaria de um certo desafio!"

Os nossos ancestrais (e alguns povos ainda hoje) costumavam ter uma comunicação constante e uma relação íntima e profunda com os seres não-humanos.

Inspire-se nos nossos ancestrais. Passeie por uma região mais natural e não tão populosa e, veja se alguma árvore te chama a atenção. Se aproxime e comece uma relação de amizade com ela. Árvores costumam ser ótimas ouvintes e muitas vezes dão ótimos conselhos. O que ela tem a dizer pra você?

Foto de Sebastião Salgado na amazônia brasileira.

Observe um animal que de repente cruzou o seu caminho. Como ele se movimenta? Quais os gestos que ele faz? Como ele se comunica com os outros da mesma espécie? Incorpore este animal, se mova como ele.

Pode parecer ridículo no início, mas este exercício ajuda a sintonizarmos com o animal que está dentro de nós, além de aumentar nossa empatia com os seres não-humanos. Pode ser divertido se você estiver disposto a abrir a reta-guarda. 

Outra opção é experimentar algum ritual xamânico. O termo xamanismo vem da palavra xamã que tem origem em um dos grupos indígenas da Sibéria, os Evenky. O xamã é uma pessoa que em um ritual entra em um estado alterado de consciência usando um chocalho, um tambor, uma planta medicinal, ou outros meios, para se conectar com a natureza, com o mundo espiritual. Os rituais servem para resolver questões pessoais, ajudar pessoas, curar, etc. Existem diferentes práticas de xamanismo pelo mundo inteiro. Experimentar alguma que te instiga a curiosidade pode abrir portas para você se conhecer melhor e também para se aproximar dos outros seres da natureza.

Nível 3: Na natureza selvagem

Procure um lugar na natureza onde dificilmente você encontrará seres humanos ou ouvirá barulhos não naturais. Chegue no nascer do sol e somente saia quando o sol se pôr.

A ideia é encontrar um lugar que te chame e onde você possa passar todas essas horas sozinho sentado, sem interferências externas: sem falar com pessoas, sem levar o celular, sem comida, sem barraca, sem grandes confortos.

Foto de Christopher McCandless, o rapaz que inspirou o filme "Na natureza Selvagem"(2007)

Você pode estar pensando: “Ah, mas isso não parece nada hard, eu sempre faço trilha por várias horas e fico diversos dias acampando na natureza."

A proposta aqui não é lazer, exercício ou passar um tempo com os amigos. É criar e intensificar a relação com a terra e com os seres não-humanos que vivem por ali. É você e a natureza sem máscaras.

Vá com uma intenção, mentalizando alguma questão pelo qual você esteja passando e que talvez precise de uma luz. Observe o que a natureza te mostra ou te diz.

Se quiser aumentar ainda mais o nível do desafio, fique 24 horas de jejum antes da experiência, salvo casos onde você tenha alguma condição médica. O jejum pontual ajuda a limpar o excesso do corpo e a sintonizar com a natureza. 

Terceirize menos as tarefas da sua vida e faça você mesmo: plante a sua própria comida, limpe a sua própria privada, faça (costure mesmo) a sua própria roupa, construa os móveis que você quer ter ou a casa que você quer morar, utilize mais produtos locais.

Mesmo que a princípio você não saiba fazer, sempre tem alguém que sabe e pode te ensinar. Fazer com as próprias mãos, além de trazer um certo senso de conscientização e valorização do que existe ao redor, também nos ajuda a desacelerar, a estar mais presentes e a nos conectar com um senso mais rústico de ser.

Faça uma busca por uma visão (Vision Quest): Passe de 5 a 7 dias sozinho imerso na natureza, num lugar sem infraestrutura, sem conexão com a vida externa e sem distrações: ou seja, sem celular, sem livros, sem música, sem atividades ou exercícios.

Somente leve uma caneta e um caderno para anotar pensamentos, ideias, reflexões, insights que possam surgir, sonhos que você venha a ter … E também para que você possa desenhar símbolos que apareçam na sua mente. 

Quer saber mais?

Pra quem quiser se aprofundar no assunto, separamos alguns livros  que podem te ajudar nesse processo de reconexão com a natureza. Dá uma olhada:

Carla Zorzanelli

Mestra em Ciências Holísticas pela Schumacher College (UK) e guia de Terapia Florestal. Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por praia, sol, árvores e música, passou por um grande processo transformacional: de urbana, para um vida desacelerada e em processo de reconexão. Há 15 anos vem trabalhando com empresas, ONGS, Start-ups e organizações internacionais. Estuda Jung com profundidade (no qual baseou sua dissertação) e tem percorrido caminhos com práticas como: xamanismo, ayahuasca e re-wilding.