Como toda criança adestrada numa selva urbana com graves restrições à liberdade de ir e vir, acabei por me tornar um adolescente e um adulto propenso à esbórnia.
Logo que adquiri a maioridade civil eu já possuía um site daqueles que fazem coberturas fotográficas de eventos e um crachá que me dava acesso às melhores festas e boates da minha cidade. Nessa época, eu tinha uma câmera digital de 3 megapixels, um fígado quase intacto, tempo livre para repor o sono perdido e muita disposição.
Com a pretensão de diversificar o público do site, eu passei a fazer coberturas em churrascos, bailes funks, micaretas, pagodes, blocos de carnaval de rua e outras baladas undergrounds que apareciam noite adentro. Nossa filosofia consistia basicamente em encher a cara e passar a rede de arrasto na mulherada. Era uma época muito divertida, mas, analisando assim friamente, vejo que eu me contentava com pouco. E tinha muita paciência.
O tempo foi passando e eu fui me tornando uma pessoa tão mais exigente quanto antissocial. A botecagem ficou restrita a bares onde não eu precise disputar um garçom no tapa. Baladas tumultuadas em boates apertadas, multidões se aglomerando atrás do trio elétrico, no gargarejo dos palcos, bêbados ridículos trocando tapas e mesmo aquelas festinhas caídas onde o lado careta da Força tenta manter o clima de sobriedade, são coisas do passado.
Com a estabilidade de um relacionamento e um pouco mais de respeito ao fígado, a coisa toda perdeu um pouco do sentido.
A primeira vez a gente nunca esquece
A contagem dos anos estava em 2005 quando eu aceitei um convite de uma produtora local para conhecer o fenômeno das festas raves, que já estava rolando no Espírito Santo e em todo o Brasil há mais de uma década.
Tudo o que eu sabia até então sobre trance, teoricamente o som que rola nessas festas, era que os DJs utilizavam os trechos mais repetitivos e monótonos das músicas de boate e colocavam em loop, afinal estariam todos drogados, dançando sem parar e adorando qualquer barulho. Meus amigos já tinham até me passado umas músicas com nomes esdrúxulos e eu podia jurar que tratavam-se todas da mesma faixa.
A minha estreia, ao vivo e a (muitas) cores, contudo, foi num daqueles cenários belíssimos, acompanhado de uma galera pra lá de escolada, pronta pra me orientar no que fosse necessário naquele novo ambiente. Paguei de novato, mas foi só essa vez.
O que eu não sabia sobre aquela noite é que aquele viria a se tornar um novo padrão de entretenimento para os próximos anos da minha vida. Os três meninos magrelos que agitaram a pista atrás das pickups eram ninguém menos que o Sesto Sento, um dos principais projetos de psytrance do mundo, diretamente de Israel (que está para a música eletrônica como a Bahia para os refrões de duplo-sentido) e o símbolo principal do flyer da festa virou uma tatuagem, a única que eu tenho até hoje.
Na época que eu fiz a tatuagem, alguns anos depois, meu irmão mais novo me questionou se eu não estaria me precipitando, como alguns fanáticos pelo movimento da Discoteca nos anos oitenta que ainda exibem seus símbolos tatuados após a completa passagem da moda pelas pistas de todo o mundo.
Essa comparação me fez refletir que eu estava no caminho certo. Se existe algum modelo de divertimento que pode oferecer o que há de mais contemporâneo para a minha geração, é nele que eu pretendo estar.
Psicodelia, passe adiante!
O meu programa de imersão no universo cultural que circunda a produção das raves coincidiu com um crescente número de festas comerciais, visitas de atrações internacionais mega badaladas (de Skazi a Tiesto) e, particularmente, meu amadurecimento psíquico, espiritual e financeiro.
Depois de quase ser pisoteado por uma horda de micareteiros ensandecidos atrás de um trio elétrico em Salvador, tudo o que eu queria era um lugar amistoso, onde eu pudesse passar algumas horas bebendo, dançando e interagindo com as pessoas (preferivelmente de forma menos truculenta, sem coreografias coletivas que proponham deslocamento sincronizado).
Justamente o que primeiro me chamou atenção neste novo ambiente foi uma atmosfera totalmente pacífica envolta à maioria das pessoas, por mais que estivessem presentes muitas drogas, álcool e espírito de putaria. Estamos falando de uma festa, não de um culto.
Entre uma cerveja e outra (a módicos três reais, mas no caso a preço de água), fui engolindo meus próprios preconceitos e tomando um “tapa” atrás do outro com as situações insólitas que foram se desenrolando em frente aos meus olhos, ou melhor dizendo, em frente às caixas de som.
Estava amanhecendo e eu já tinha me divertido como nunca quando uma garota muito simpática, serelepe como uma borboleta, começou a conversar com a minha amiga mais liberal e eu me perguntava se iria presenciar uma cena lésbica – obviamente cogitando a minha participação. Intuitivamente, talvez percebendo a mensagem nas minha feições, a garota vem até mim e me manda fechar os olhos. Depois de ganhar a melhor massagem da minha vida, recebi um tapinha no ombro e uma singela orientação:
“Curtiu? Passe adiante!”
Naquele mesmo instante eu já sabia que a regra valia não só para massagem, como também para respeito e gentileza.
Life is a dancefloor. God is the DJ.
A despeito de todas as outras experiências pessoais que envolvem as pessoas em seus respectivos momentos de vida, uma coisa de fato une a todos os presentes em uma rave: a música que emana das caixas de som.
Quanto mais alta, tanto melhor: o ouvido dá lugar ao corpo todo capturando as vibrações absurdamente contagiantes que saem de uma boa estrutura. Quando o DJ entra na pilha dos malucos da pista, a tendência é só piorar a situação.
O espetáculo se completa com um show de luzes psicodélicas e uma decoração arrojada, com painéis fluorescentes e objetos não identificados no cenário. Como em qualquer apresentação, o carisma e o talento do DJ determinam a propensão do pessoal a se jogar no ritmo da música e fazer a pista pegar fogo de verdade.
Durante a madrugada, os DJs costumam acelerar os BPMs (batidas por minuto) e alguns são tão apegados ao lance da velocidade da música que chegam e estuprar os tímpanos alheios com sequências sonoras quase insuportáveis de tão rápidas e agressivas. Chamam isso de dark fullon, mas eu não recomendo a pessoas com labirintite ou refluxo.
Visão aérea do Festival Cachoeira Alta, uma reunião de malucos pirando por 4 dias em Ipoema, Minas Gerais – MG (YouTube)
Com o raiar do Sol, geralmente a frequência do som diminui, mas não o volume. Em alguns casos o que se ouve não é muito diferente do que rola nas rádios FM (as que tocam algum tipo de música eletrônica), ou apresentações de uma vertente mais contida conhecida como minimal (ou simplesmente “barulhinhos estranhos”).
Depois de algum tempo indo a raves, muita gente deixa pra acordar cedo no dia seguinte e ir curtir só esse pedaço da festa, com menos pessoas idiotas se escondendo na escuridão e um mar de nádegas, coxas e decotes irresistíveis para apreciação em plena luz do dia.
Dentre todas as atrações e momentos inesquecíveis que uma festa pode proporcionar, o mais significativo talvez seja aquele exato instante em que você entra em contato consigo mesmo, rodeado de tanto barulho e confusão, se flagra ouvindo (e dançando!) uma melodia sem sentido e se pergunta se tantas outras coisas sem sentido que nos passam pela frente não poderiam oferecer alguma magnitude a ser contemplada.
Na segunda parte, um manual de sobrevivência em raves e uma breve reflexão sobre o estilo de vida por trás dessas festas.
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