Crises são momentos nos quais aquilo que é velho não morreu e aquilo que é novo ainda não nasceu. A mídia tradicional está até o pescoço nessa areia movediça, agindo como se estivesse lidando com uma marolinha insolente.
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Eu estava na quinta fileira da enorme platéia no 26º Fórum da Liberdade, quando Julio Saguier, presidente do jornal argentino La Nación, abriu sua fala contando uma pequena história para ilustrar o momento atual de sua organização – que luta por sua liberdade de expressão diante da pesada censura governamental:
“(…) uma rã jogada em uma panela quente logo salta para fora. No entanto, uma rã colocada em uma panela com água, lentamente cozinhada a fogo lento, lá permanece até morrer, sem se dar conta de seu trágico destino”.
Essa história calha em representar muito bem a luta dos veículos brasileiros pela sobrevivência.
Pois não haverá jornais ou revistas para se preocupar com liberdade de imprensa se estiverem falidos. E caso sigam operando por meio de modelos de negócios cuja conta insiste em não fechar, eles vão falir.
Ano passado mais de 1230 jornalistas foram demitidos. Mais de três cortes por dia. Folha, Estadão, Rede TV, Grupo Abril, Globo, Band, Istoé, Caros Amigos, TV Cultura, Diário Braziliense, R7, Record… ninguém escapou da degola.
Passaralhos já bateram asas no Estadão, Folha, Trip e Record esse ano. Fora os rumores de que onze revistas seriam extintas na Abril, incluindo a Playboy.
Há redações em greve, jornais fechando as portas, sindicatos travando batalhas jurídicas contra cortes imotivados, salários em queda e repórteres atuando no limite, em jornadas de trabalho cada vez mais abusivas.
Bruno Torturra chegou a cunhar o termo “ficaralho”:
“Semana passada vi a alegria de amigos que perderam o emprego. E vi a depressão, o choro dos que sobraram na redação, agora acumulando funções, fazendo o trabalho de 3, repetindo uma rotina que não parece ter qualquer propósito senão o precarizado salário. As demissões são, na verdade, Ficaralhos.
Se fode quem fica.”
Os veículos hoje operam como se os editores e repórteres fossem co-responsáveis pelo peso de operações confusas, ainda sem rumo diante dos novos tempos. Enquanto isso, gestores disparam declarações profiláticas. Ao questionar Fabio Barbosa, presidente do Grupo Abril, sobre o futuro da comunicação, escutei:
“Sempre vai haver demanda por informação de qualidade, crível(…) então o que nós temos na verdade é um ajuste em busca de novos modelos de negócio que possam dar suporte às várias alternativas que o usuário tem para escolher como deseja receber a informação.”
Não é ajuste.
É um tsunami.
Momentos como esse confrontam organizações do passado com o “dilema da inovação” proposto por Clay Christensen, escritor e professor de Harvard. Em tais situações, os players novatos, em vez de vencerem os concorrentes já estabelecidos no jogo que estão jogando, mudam as regras da competição. Assim surgem as inovações de ruptura.
Clay declarou em entrevista para o Nieman Journalism Lab:
“Você não sente até o momento final. Acredito que é isso que está acontecendo com os jornais. O negócio segue em um nível plausível por um bom tempo. Mas penso que estamos vendo uma queda não-linear no negócio central”.
O fluxo de captação, apuração e publicação das informações foi virado do avesso pelos ecossistemas digitais. Produzir conteúdo relevante, ético e financeiramente sustentável pressupõe compreender tais forças.
Produtores de conteúdo vão se consolidar como articuladores, curadores e conectores de espaços de informação, ideias e diálogo em suas mais variadas formas.
Espaços que sejam co-criados e estruturados horizontalmente, com maior porosidade hierárquica. Suas competências passam a englobar curadoria multimídia, formatos e plataformas digitais, mídias sociais, algoritmos, estatísticas, programação e design, tornando-os aptos a construir narrativas em quaisquer meios, com equipes multidisciplinares.
Isso implica rever as exigências estruturais, físicas, logísticas, jurídicas, administrativas e financeiras que perpassam um veículo e sua operação.
Pense em novos modelos de produção e negócio, em design de experiência editorial, em redes.
Segundo Ben Hammersley, editor da versão inglesa da Wired, os produtores de conteúdo do futuro não vão trabalhar em empresas:
É claro que haverá um período de transição, ninguém vai sair pedindo demissão por aí. O jornalista precisa começar com uma história. Pense em filmes tipo Onze Homens e Um Segredo. O início é sempre a equipe se reunindo para uma tarefa praticamente impossível.
No fim, com a missão concluída, cada um segue seu rumo. Acho que os trabalhos jornalísticos serão assim no futuro.
Ninguém vai fundar um jornal. Um bando de caras talentosos irá se reunir e vai configurar algo como www.despesasdosparlamentares.com.br, o projeto vai render excelentes histórias, durar uns seis meses e o dinheiro não virá necessariamente do site em si.
Leitores outrora anestesiados e passivos adotam postura ativa. Checando fontes, trucando e dialogando com autores antes blindados por meios estanques como a televisão e o impresso. O conteúdo ganha caráter orgânico, pulsante. Publicar se torna apenas o início de um percurso de diálogo, não o fechamento da tarefa. Nesse sentido, o New York Times tem demonstrado inteligência ao produzir reportagens digitais espetaculares, cruzando avanços tecnológicos com textos impecáveis, como na recente peça Snow Fall: The Avalanche at Tunnel Creek, de John Branch.
João Roberto Marinho, presidente do Conselho Editorial das Organizações Globo, reconheceu o tamanho do buraco quando o questionei sobre o futuro do jornalismo:
“Acho sim que o jornalismo profissional, organizado, está em xeque, pelo que a internet e a era digital estão possibilitando”.
Já Fabio Barbosa afirma, “está mudando, está mudando… Mas a gente tem tempo pra fazer uma adaptação. Daqui 10 anos vai ser muito diferente do que é hoje.”
Não temos tempo. As estruturas atuais mal se pagam, não estimulam a mudança e não formam profissionais com as habilidades necessárias para o futuro.
É necessário reconhecer as oportunidades e construir novos modelos de produção de conteúdo, inclusive permitindo que tais iniciativas tenham força suficiente para se tornarem maiores do que seus progenitores. Não para daqui cinco ou dez anos. Para agora, pra ontem.
Enquanto há lá fora instituições como o Nieman Journalism Lab e o Poynter, ambos pensando e estruturando, na prática, caminhos para o futuro da área, o que temos? Onde estão os centros de estudo e veículos disruptivos, independentes, as iniciativas de sucesso envolvendo mobile, tablets, data journalism, big data journalism e crowd journalism?
Onde estão nossos Medium, ReadMatters, UpWorthy, Readability, Longreads, BuzzFeed e ReadyMag? Onde está nossa Firestorm?
Tais perguntas seguem em aberto.
Para encerrar, retomo o final da anedota compartilhada por Julio Saguier, “(…) a rã, desesperada para escapar do fogo lento em que está sendo cozinhada, tenta de tantos modos saltar para fora da panela que acaba por conseguir e escapa com vida”.
Espero ver o mesmo salto por aqui.
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Convite para o Content Summit
No dia 13/07 vou mediar o debate “O futuro do conteúdo”, no evento Content Summit, realizado pela Media Education e apoiado oficialmente pelo Escribas, nosso braço de custom publishing.
Será um dia inteiro de debates e palestras em torno da temática conteúdo, aqui em São Paulo, com alguns dos melhores profissionais do país.
Restam poucas vagas. Os convido para seguirmos essa conversa por lá.
E deixem seus comentários logo abaixo, pra nos aprofundarmos nesse papo. Pretendo levar as melhores questões e críticas para o debate presencial.
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