Em frente à banca de jornal, com os vizinhos no fim da tarde, ele chega sempre no mesmo tema com as mesmas reclamações. “Ah, eu acho que não tô aguentando mais, já não me serve”, diz com aquele desdém que faz sua boca enrugar enquanto fecha os olhos e dá de ombros. “Qualquer hora eu vou-me embora ou tiro logo ela de casa. Sabe como é, o homem precisa do seu espaço, da sua dignidade. Eu é que não vou ficar sustentando quem não merece”.

Dos amigos, um ou outro balança a cabeça, não afirmativamente, mas só pra não ficar na letargia de não ter o que se responder, alguém se despede, o jornaleiro vai ajeitar as revistas pornográficas lá do fundo. 

Em casa, toma um banho, larga a roupa suja no pé da cama. Vai de ceroulas para a sala, leva junto travesseiro e lençol. Pega duas cervejas, senta-se com os braços abertos no encosto como se precisasse de um abraço, liga a tevê e deixa a hora correr. Passa o jornal noturno, novela da noite, filme dublado cheio de cortes. Só se mexe para pegar mais duas latinhas e para apertar o botão do controle remoto pra ver as horas na programação do cabo. Ouve o barulho da porta já perto de meia-noite mas não vira a cabeça para olhar diretamente pra ela. Bota os olhos na parede ao lado, como se tivesse analisando o motivo do conjuntinho de vasos em cima do aparador. Sua boca enruga igualzinho como fez na banca mais cedo. Mas não dá de ombros.  

Ouve a chave no chaveiro, a bolsa no mancebo, a luz da cozinha sendo acesa, microondas sendo ligado. Não se mexe. Vê o vulto da mulher passando ao lado dele direto para o corredor do quarto. Volta passando de pijama curtinho na direção da cozinha. Está descalça e ele consegue reparar nos cabelos dela. “Bem que você disse que qualquer dia chegaria de cabelos molhados em casa e que era pra eu me preparar, né”. Sua boca fica parecendo um cu de tão crispada e a resposta da cozinha não vem. O forno apita o fim de mais um trabalho e ele fica com a cara virada pra televisão, mas com os ouvidos no arranhar de talheres no prato. Torneira da pia, louça no escorredor, o interruptor da luz sendo apagado. Dá pra ele ouvir tudo e o costume do cálculo espacial de sua própria casa faz com que ele estique o braço no momento exato que o vulto dela passaria de novo. 

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“Tava fazendo o que na rua a essa hora, hein?”. Sentiu o braço se soltar do aperto débil da sua mão, não num puxão de insegurança, mas com a convicção de quem já está cansada. “Você não é mais meu marido, muito menos companheiro. Você não mora mais aqui, só ainda dorme aqui na sala porque não tem pra onde ir. Eu já pedi educadamente pra você sair e estou esperando o dia em que eu vou chegar na minha casa sem ter você pra eu ficar com pena quando chegar de cabelo molhado. Que nem agora”. Ela foi pro quarto sem dar boa noite. 

A mesma posição: braços esticados no encosto, a boca franzida, rugosa, queixo pra cima e olhos para baixo. “Dó de mim. Eu que tenho dó de você, largada aí e achando que dá as cartas. Eu vou embora a hora que EU quiser”, resmungou pra ninguém ouvir. “E daí sim, quando EU disser, esse casamento acaba”. Deixou o corpo deslizar pelo sofá até ficar deitado. Puxou o lençol, esmurrou dois socos no travesseiro para ajeitá-lo e se deitou. Resolveu dormir de luz acesa mesmo. Só porque não tinha ninguém pra mandá-lo fazer o contrário.

“Quem dá a última palavra em casa é sempre o homem”, disse já de olhos fechados.

É. Tem razão.

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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados