Em meio à pandemia e ao excesso de informação, é natural sermos assolados por incertezas, medos e equívocos.
Se é bem verdade que não há ser humano que escape das dúvidas, é igualmente verídico que cérebros bem estimulados passam pelas crises com muito menos turbulência.Não, isto não quer dizer que você precise se tornar um home broker de estatísticas virais, nem que tenha que ver todos os vídeos que sua tia e seu primo te mandam sobre a NASA criando Álcool Gel invisível para vencer os Illuminati.
Os protocolos de saúde dos órgãos responsáveis já estão sendo disponibilizados em todos os grandes portais de notícias, basta uma checagem de cinco minutos diários para saber se eles sofreram alguma atualização.Então, se é tão simples, porque estamos todos assustados?
A velocidade com que as informações chegam nos faz crer que sempre estamos desatualizados, despidos e, literalmente, inseguros. Pois bem, uma das funções do Conhecimento é nos dar a sobriedade necessária para agirmos da melhor maneira possível em situações como a atual.
Pensando que um número cada vez maior de brasileiros ficará em casa por um longo período, e que outra porção passa boa parte do tempo no translado até o trabalho, minha sugestão é a indicação de grandes livros que possam não só fazer a diferença na vida das pessoas de maneira direta, como também abrirem novas possibilidades de sentir e refletir. E por que livros? Porque toda vez que temos nossa noção de mundo ampliada, ocorre algo muito especial e único. Ao invés de nos apequenarmos, nos tornamos ainda maiores e mais fortes, como gigantes com espaço para correr.
Há uma falsa impressão de que o Conhecimento é sempre chato e penoso, que se não for estritamente utilitário não tem porque ser aprendido. Not today, Satan!
Prepare-se, o que virá a seguir é uma lista pronta para quebrar estas ideias, feita para enriquecer a sua vida, entreter os seus tédios, e estimular ainda mais a incrível potência que vocè reserva dentro dessa máquina incrível que é o seu cérebro!
Perguntei a dez das melhores mentes brasileiras, o que elas recomendariam para lermos nestes dias e por quê. A seguir, indicações vindas de alguns dos nossos mais brilhantes cientistas, escritores e estudiosos. Essa lista vale ouro.
Aberta com maestria, eis uma porta sem volta para a aventura e sabedoria. Boa viagem!
Leandro Karnal (Professor da UNICAMP / Escritor)
Livro: A Paixão Segundo G.H, de Clarice Lispector
“A autora faria cem anos em 2020. Uma mulher trancada em um apartamento fazendo reflexões sobre solidão e consciência. Excelente para os dias de hoje. Um desafio: Ser sem precisar mostrar.”
Alcides Villaça (Poeta / Professor da USP)
Livro: "Pureza", de José Lins do Rego
“Há romances e narradores visceralmente pessoais, desses em que o leitor tem dificuldade para distinguir entre a ficção e o depoimento, entre a imaginação e o vivido, entre a representação do mundo social e o corte autobiográfico. José Lins do Rego é um desses autores, e ‘Pureza’ é um desses romances.
Publicado em 1937, depois de algumas obras inscritas no chamado ciclo da cana de açúcar, "Pureza" é uma história escandalosamente pessoal, e acaba demonstrando o fato de que toda história essencialmente pessoal é já reveladora dos aspectos sociais que concorrem inevitavelmente na formação da pessoa.
José Lins do Rego, nesse romance menos famoso mas dos mais atrevidos e atraentes, recolheu uma história íntima, narrada na voz encapsulada e totalizante da primeira pessoa, ao mesmo tempo em que mostra a que específicos elementos da realidade o protagonista/narrador deve sua totalização. Este é um rico homem do Recife que vai buscar sua saúde numa espécie de confinamento, no entorno natural de uma estaçãozinha de trem, chamada Pureza. Vai munido de sua fraqueza de caráter, seus instintos de sobrevivência e sua busca da realização dos prazeres sensuais.
Sobram questões para se discutir, sobretudo levando em conta até o fim a qualificação que Otto Maria Carpeuax deu a Zé Lins: ‘um escritor orgânico’.”
Caetano Vilela (Encenador e iluminador, representou o Brasil na Quadrienal de Praga, em 2015)
Livro: A Montanha Mágica, de Thomas Mann
“Corram para a Montanha!
É hora de tirar o pó da estante e enfrentar aquele clássico que está ali escondido. Hoje ele vai salvar o seu dia, ou melhor dizendo, a sua quarentena. Thomas Mann não costuma ser um escritor de fácil leitura (embora tenha escrito os ‘romances-panorâmicos’ Morte em Veneza –
adaptado brilhantemente para o cinema por Visconti – e Os Buddenbrook, de leitura mais acessível), requer tempo e atenção. Agora, com o nosso provisório recolhimento social, temos pelo menos uma oportunidade para nos dedicarmos a leitura de A Montanha Mágica, o ‘livro resumo’ do século XX.
Todos os conflitos físicos e existenciais que formam o caráter humano estão presentes nesse romance que tem como cenário um sanatório nos Alpes Suíços (na famosa cidade de Davos, também conhecida hoje em dia como sede do Fórum Econômico Mundial) onde um personagem está internado para se curar de uma tuberculose, a ‘doença dos poetas’.
Seus personagens são figuras arquetípicas de uma sociedade pré-guerra: liberais, conservadores, hedonistas e, claro, um jovem idealista que, durante seu retiro para tratamento, descobre a importância da arte, política e religião na sua vida.
Uma curiosidade, Thomas Mann (1875-1955) era filho de um político alemão e sua mãe era brasileiríssima: Julia da Silva Bruhns. O escritor João Silvério Trevisan escreveu um romance centrado na personagem Ana, escrava e ama de Julia; se chama Ana em Veneza, mas isso é outra história.”
Férrez (Romancista / Contista / Poeta)
Livro: Contos Negreiros, de Marcelino Freire
“Pra mim é um retrato fiel e contundente de um país com suor de quem não usufrui.”
Jorge Coli (Professor da UNICAMP / ex diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humana da UNICAMP)
Livro: Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas
“Nestes tempos preocupantes e deprimentes, precisamos de um livro que nos eleve ao prazer da aventura, que nos faça esquecer os novos limites do quotidiano. Encontrar a mocidade e a vida daqueles heróis, receber a energia e a coragem, da amizade, da fraternidade, é o que precisamos.
Já vou correndo abrir o meu, e sentir a delícia desse início, desses três presentes do senhor d'Artagnan pai, e me imaginar nas façanhas e correrias.”
Marcia Barbosa (Diretora da Academia Brasileira de Ciências, Membro da Academia Mundial de Ciências / professora na UFRGS)
Livro: Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade, de Heloísa Buarque de Holanda
“A pergunta ‘o que é o feminismo’ não faz mais sentido, pois o que existe agora são os feminismos. O movimento que iniciou como um desejo de ter um local de fala, de trabalho, ao longo da história trilha caminhos.
Heloísa organiza uma série de artigos de grandes pensadoras do nosso tempo que falam do feminismo na rua, na rede, na política, na arte, na academia, das mulheres negras e índias, da asiáticas, das trans… e da menina de cabelo azul.
Os textos são leves, pois o tema é denso. São como pinceladas de diferentes cores que montam o quadro desta ideia revolucionária de que mulher é gente e de que a diversidade é sinônimo de eficiência.”
Pâmela Billing Mello Carpes (Consultora do Programa Science of Learning, do Escritório de Educação Internacional da UNESCO / Professora na Universidade Federal do Pampa)
Livro: O conto da Aia, de Margaret Atwood
“Este é um livro que nos choca e mobiliza a cada página, ao mesmo tempo que nos abre os olhos. Gradativamente, a autora nos faz perceber que a forma como os fatos se desenrolam diante dos olhos da personagem narradora em muitos aspectos se assemelham a acontecimentos atuais, nos fazendo refletir sobre o quão sensíveis e frágeis são as conquistas sociais das mulheres.
Trata-se de um romance fictício no qual, pela imposição de um novo regime de governo totalitário, as mulheres, principalmente, são privadas de sua liberdade individual e têm negados direitos básicos sobre o corpo (mas não somente sobre ele), sendo privadas de sua liberdade individual.
Nos dias atuais, embora devamos comemorar as conquistas das mulheres, não podemos deixar de lutar pela equidade nos diferentes campos, nem perder o olhar cuidadoso sobre a fragilidade das mesmas.”
Rogério de Almeida Coordena o Lab_Arte (Laboratório Experimental de Arte-Educação & Cultura) / Editor da Revista Educação e Pesquisa (FEUSP) / Professor na USP
Livro: Decameron, de Giovanni Boccaccio
“Enquanto em 1348 a peste negra assolava a Europa dizimando cerca de um terço da população, dez jovens (sete mulheres e três homens) se refugiam em uma casa de campo em Florença e, todo dia, contam histórias. São dez dias, dez jovens, cem contos (ou novelas) sobre a vida e a condição humana: amor, humor, flagelos e delícias.
Muitas dessas narrativas são cômicas, outras satirizam religiosos, há erotismo e também ingenuidade. Um retrato da humanidade que é tanto mais fiel por ser múltiplo. E bastante atual, pois o humano, pelo que parece, é sempre o mesmo. Há quem julgue que narrar histórias ou ler livros num momento de pandemia é puro escapismo, mas o livro pode ser considerado uma obra realista, inclusive pela descrição detalhada dos sintomas dos infectados e da situação vivida pela sociedade italiana da época.
Um belo livro que nos ensina a viver tragicamente: a vida pode ser afirmada mesmo com todo sofrimento.”
Sabrina Lisboa (Professora na FCFRP/USP / Laureada do Prêmio Mulheres Na Ciência)
Livro: Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.
"Imagine de repente uma cegueira branca, coletiva, que se alastra rapidamente, forçando as pessoas “infectadas” a ficarem em quarentena para evitar que se espalhe. Uma diferença do momento atual que estamos passando, em que as pessoas devem ficar em suas casas, é que as personagens são confinadas juntas em um manicômio.
São inúmeros os conflitos gerados, situações de egoísmo, violência e necessidade de troca de favores para conseguir os itens mais básicos para sobrevivência (alguma semelhança?). Por outro lado, ao mesmo tempo existem aqueles que pensam em grupo e têm ações altruístas. O livro todo retrata situações antagônicas entre ética, coletivismo e solidariedade, e falta de caráter, egoísmo e individualismo, o que, infelizmente, temos visto diariamente nas relações interpessoais.
De forma brilhante, Saramago nos leva a ter reflexões profundas sobre os acontecimentos da vida e sobre as mais diferentes ações e reações humanas em meio a situações desconhecidas e de caos; sobre a 'responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam'."
Stevens Rehen (Professor titular da UFRJ, cientista do Instituto D’Or, Membro da Academia Latino-Americana de Ciências, ex-presidente da SBNEC)
Nota do autor: Stevens gostou tanto da ideia que enviou logo quatro recomendações. O que me falta em competência cognitiva a altura, me sobra em bom senso, por isso, não vou selecionar apenas um. Abaixo todos os quatro, para deleite da nação:
1) O Oráculo da Noite, de Sidarta Ribeiro
"Mais cedo ou mais tarde precisaremos voltar a sonhar. Que tal entender as bases biológicas do sono e do sonho enquanto o pesadelo não passa?"
2) Homo Deus, de Yuval Harari
"Como disse o próprio autor por conta da pandemia: cada um de nós deverá escolher entre confiar em dados científicos e especialistas em saúde ou em teorias da conspiração e políticos egoístas."
3) A Emoção e a Regra, de Domenico De Masi
"Uma análise de estratégias e processos criativos que tornaram possíveis experiências extraordinárias de idealização coletiva. Oportuno em tempos de pandemia."
4) Como mudar sua mente, De Michael Pollan
"A única maneira de evitar uma situação ainda mais dramática por conta da epidemia é o isolamento que, por sua vez, trará um impacto psicológico grande a todos. É preciso cuidar da mente mais do que nunca e conhecer alternativas que surgem a partir da ciência psicodélica."
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O cardápio está disposto, é hora de começarmos a matar a nossa fome!
As coisas nunca ficam mais fáceis, mas nós podemos ficar mais fortes.Agradeço a todos os participantes que gastaram parte do seu tempo em meio a esta crise para nos dar indicações preciosas e agradeço, principalmente, a vocês, leitor e leitora, que recebem porrada todo dia, literal e figurativa, e seguem com brio fazendo a vida valer a pena de ser vivida.
Normalmente indicamos links da Amazon pra facilitar a compra, mas dadas as circunstâncias e por saber que a Amazon dificilmente vai sofrer uma pancada tão forte assim em meio à pandemia, decidimos mudar a abordagem e deixar um incentivo para que você também compre de pequenas lojas. Muitas livrarias de rua já estão sofrendo as consequências da quarentena e, pensando nisso, deixamos aberto o espaço de comentários abaixo para que todos os livreiros possam colocar seu contatos. E se você, leitor, também puder, recomende livrarias de rua e suas redes sociais.
Ah, e tem uma dica de livro legal? Não se faça de rogado, ponha a #indiqueumlivro para circular nas redes, vamos passar por essa juntos, não vai ser fácil, nunca é, mas seguimos de corações abertos e mentes efervescentes!
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.