Primeiro veio a série do Matthew Murdock, o Demolidor, personagem dos quadrinhos que encarna o debate sobre a diferença entre a Lei e a Justiça. Com cenas de luta meticulosamente filmadas e coreografadas e um grau de violência acima do que a audiência esperava para uma série de TV, a primeira temporada estourou todos os índices de audiência do Netflix. A seriedade nos trabalhos dos atores e da produção com tratamento cinematográfico abriu caminho para uma longa sequência de adaptações desse universo de super-heróis, focadas em um público adulto.
Depois foi a vez de Jessica Jones, uma personagem pouco conhecida do público em geral, apresentar sua versão do empoderamento feminino. A série deliberadamente escolheu um time de produção liderado por mulheres, que construíram uma narrativa que fala de assuntos difíceis como estupro, abuso físico e psicológico e dependência emocional.
Já no ano passado, Luke Cage, um dos primeiros personagens negros dos quadrinhos de super-heróis, trouxe para o público da TV o debate sobre a questão racial nos Estados Unidos. Traçando paralelos com os debates reais sobre violência policial, crime e encarceramento, a série é recheada de referências sobre a cultura negra norte-americana.
Agora chegou a vez de Daniel Rand, o Punho de Ferro, ganhar sua própria versão filmada, para, além de provar que os super-heróis tem sido um filão lucrativo para as produtoras e atrativo para os espectadores, nos dar a oportunidade de explicar algumas questões do universo dos heróis de quadrinhos e das narrativas em geral. O que vamos fazer hoje.
Criado por dois veteranos da indústria dos quadrinhos, o desenhista Gil Kane e o roteirista Roy Thomas, em 1974, a pedido da Marvel, o personagem combinava poderes místicos e artes marciais com o clássico drama hamletiano do filho que busca vingança contra o usurpador que matou seu pai.
Nos quadrinhos a trama era repleta de elementos orientais, o que dialogava com a intenção da editora de aproveitar o sucesso da série de TV Kung Fu, estrelada por David Carradine (o Bill, de Kill Bill), para atrair mais leitores na década de 1970. Antes da criação do Punho de Ferro, a Marvel tentou até mesmo comprar os direitos da série de Carradine. Sem sucesso, a editora acabou se contentando com os direitos dos personagens da série de livros de aventura Fu Manchu (1913), do escritor inglês Sax Rohmer (Arhtur Henry Ward), aproveitando os personagens para a série de outro herói – Shang-Chi, um mestre de Kung Fu esteticamente inspirado em Bruce Lee. Embora seja uma versão mais ocidentalizada, as histórias de Daniel Rand se conectam a tudo isso.
Uma segunda camada muito interessante dessa intrincada relação de narrativas é o paralelismo entre a jovem e vibrante indústria cinematográfica dos anos 1920 – que adaptou as aventuras de Fu-Manchu para a telona aproveitando-se do enorme sucesso dos livros de Rohmer – e a atual adaptação dos quadrinhos do Punho de Ferro para a TV.
Inicialmente, o livro The Mystery of Dr. Fu-Manchu foi publicado em 1912 em capítulos, como uma novela, assim como os quadrinhos do Punho de Ferro na década de 1970 eram publicados em edições mensais. Hoje, a história se repete. A nova e milionária indústria da TV por streaming aproveita o sucesso global dos filmes de super-heróis para trazer à tona um tipo de narrativa que tem uma longa linhagem e muita vida útil pela frente. As séries de TV são o novo cinema, e os quadrinhos são a nova literatura de fantasia.
E existe ainda uma relação interessante de Bruce Lee com tudo isso.
Depois de fazer o papel de Kato, o assistente do Besouro Verde na série de TV The Green Hornet, Lee criou o argumento para a série Kung Fu imaginando que ele seria o ator principal. Seu argumento foi roubado e o papel título ficou com o citado David Carradine, por isso Bruce Lee voltou para Hong Kong e estrelou o filme O Dragão Chinês (1971), que bateu recordes de bilheteria.
Depois disso, o kung fu continuou na moda. Nos anos seguintes os filmes de Bruce Lee se popularizaram e ajudaram a consagrar a ideia de que todas as ações do homem podem ser uma prática marcial, tirando daí duas implicações: 1. Qualquer um pode lutar (desde que tenha disciplina) e 2. Qualquer saber pode ser uma arma.
No ocidente, a primeira dessas ideias é mais assimilável por que tangencia a ideia de meritocracia. Já a segunda, é um pouco mais mágica pra nós, como no caso de Daniel-San (Karate Kid) que lixa o assoalho e pinta a cerca para desenvolver os fundamentos de seu estilo de luta.
Tantos elementos estão reunidos e misturados na história do Punho de Ferro. Nela, um ocidental retorna de seu exílio no Oriente, depois de um intenso treinamento (disciplina e repetição), e encontra seu inimigo à frente de uma corporação multimilionária e inescrupulosa. A vingança do personagem é tomar a frente dos negócios de seu falecido pai para fazer justiça no melhor estilo vigilante de uniforme.
Se apoiando nos ombros disso tudo, a série do Netflix vai ter aspectos dessa origem do personagem somados às características acrescentadas nos quadrinhos por outros autores como os premiados roteiristas Ed Brubacker e Matt Fracton, que escreveram o arco narrativo em 2006 conhecido como O Imortal Punho de Ferro. Nesse arco são revelados segredos e tradições da cidade de K'un-L'un (onde Daniel Rand recebeu seu treinamento), é mostrada a linhagem passada e futura daqueles que possuem os poderes do Punho de Ferro e, sobretudo, o confronto com a HYDRA, organização ancestral e mística cuja origem se entrelaça com as escolas de luta de K'un-L'un.
O outro aspecto interessante das histórias em quadrinhos, agora transposto para o Universo Cinematográfico Marvel (UCM), é que um mesmo universo é compartilhado por todos os personagens. A Marvel já em suas primeiras publicações, mas sobretudo após Stan Lee assumir o controle criativo, tinha personagens fazendo participações especiais nas histórias uns dos outros. Uma vez que as histórias respeitam a cronologia e até o momento de cada série (se um herói está fora da Terra, os demais aparecem lamentando sua ausência) é possível traçar paralelos entre as narrativas e até imaginá-los interagindo, como está próximo de acontecer em Os Defensores.
Essa outra série que também já está em produção pela Netflix vale um post particular, mas aqui podemos adiantar que ela vai reunir Luke Cage, Jessica Jones, Demolidor e o próprio Punho de Ferro, algo que seria inimaginável até o início dos anos 2000, quando Brian Michael Bendis, um dos principais roteiristas da Marvel, incorporou os heróis urbanos ao grupo principal de Capitão América e Homem de Ferro.
O cenário real que é o pano de fundo de todas essas séries também reforça o grau de identificação da audiência. Diferente de sua principal concorrente, a DC Comics, que prefere criar localidades fictícias para seus heróis, como Metrópolis e Gotham City, a Marvel ambienta seus personagens em cidades "de verdade". No caso de Punho de Ferro e de todas as outras séries interligadas: Nova Iorque.
Seja por sua ligação com os filmes de kung-fu dos anos de 1970, ou com literatura de folhetim do início do século XX, seja pela ligação com o Universo Cinematográfico da Marvel, ou pela inspiração em arcos específicos dos quadrinhos, Punho de Ferro é a quintessência do pop: uma complexa colagem de referências. Com episódios que têm títulos inspirados em nomes de movimentos marciais como O Arrancar da Folha Inferior da Lótus, podemos esperar entretenimento de alto nível, fiel às suas tradições originais, e que vai apresentar o tema e o personagem para muitos novos espectadores que, no futuro, podem se juntar a nós na campanha: não, não é só uma história de super-herói.
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