Primeiro foi o bacon. Glutões diziam adeus ao consumo de banha suína frita. Sim, estava proibida. Era uma questão de saúde pública, diziam os entendidos, abrindo pastas de estatísticas, provando que a diminuição do consumo reduziria os problemas de saúde por conta do excesso de colesterol e gordura. Alguns baiconmaníacos reivindicaram o direto de viver perigosamente e entupir suas artérias, mas os entendidos, mais uma vez, mostravam números de fatalidades decorrentes dos bacon-passivos, que não degustavam a iguaria, mas respiravam a fumaça engordurada nos frágeis pulmões. E, pelo bem coletivo, baniu-se de uma vez por todas. Chapeiros, em um movimento inédito na classe, fundaram seu sindicato e grandes indenizações foram pagas a eles. O bacon era o vilão da década. Até o time de futebol conhecido como “porco” mudou seu slogan – aproveitando as cores do clube, para um voluptuoso brócolis.

Também uma tentativa de evitar atrocidades como esta

Depois foram as fritas, pobrezinhas. Eternamente renegadas ao papel de coadjuvantes, ascenderam rapidamente à protagonista do maior macartismo gastronômico e no processo de falência de diversos fast foods. Donos de botequins corajosamente tentavam uma substituição, criando a porção de purê, pouco higiênica e menos ainda funcional – afinal, era necessária uma lavada de mãos a cada nova investida ao pote. Rapidamente a consistência morna e pegajosa da nova porção se estendeu ao comportamento no bar e ao teor das conversas. Estava inaugurada a era do purê.

Os números, segundo os entendidos, sempre eles, foram positivamente assustadores. Os gastos com saúde diminuíram e, embora ninguém falasse que aumentaram os gastos na vigilância, o plano tomou nova forma e foram adotadas outras medidas. “Medicina preventiva” era o termo do momento. Pouparia milhões aos cofres públicos e, assim, seria benéfico para a maioria. A ginástica passou a ser a vedete da nova política. Nas escolas, Educação Física passou a ser a matéria mais importante da grade, abrindo mão de Artes, Literatura, História e outras matérias inúteis. Nas empresas, a ginástica laboral passou de duas vezes por semana para quatro vezes ao dia. Corpo são, mente sã. Diziam eles.

Nunca o “melhor prevenir do que remediar” ficou tão em voga. Percebendo a eficácia do termo, outros setores começaram a utilizá-lo. A arma contra o crime passou a ser o toque de recolher. Depois da meia noite, qualquer um poderia ser preso ou morto. Legitimamente, valia a pena abrir mão da liberdade pela segurança.

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O próximo passo natural foi proibir a piada. Todos tinham o direito de se sentir ofendidos, e era dever do estado garantir a preservação de todos, caçando, assim, a anedota. Grupos de portugueses e loiras declaravam apoio veemente a medida, embora não se pudesse dizer que soubessem exatamente o significado da palavra. O mercado negro de piadas era imenso e perigoso, e as represálias intensas. Se algum sujeito fosse ouvido gargalhando, era prontamente denunciado pelo vizinho ou membro da família. Seria investigado. Era preciso manter o bem-estar e a harmonia, e uma piada não poderia por tudo a perder. A felicidade geral foi instituída como um dever do cidadão e as expressões passaram a ser permanentes poses para fotografia. Sorrisos que se formavam na boca sem terem saído da alma.

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A expectativa de vida passou para quase 150 anos, a criminalidade era praticamente nula, ninguém mais se sentia ofendido, conflitos eram inexistentes, e, quando entrevistadas, as pessoas diziam estar se sentindo muito bem consigo mesmas. Com os números não se discutia, diziam os especialistas. E um plano de “capacitação profissional” treinou mais de 300 Datenas com a nobre missão: a manutenção da democracia. Se tudo estava tão bom e a maioria estava feliz, era necessário o abafamento de ideias dissonantes. Os cidadãos de bem não poderiam medir esforços para um mundo melhor e, sendo assim, era um dever reprimir, da maneira que fosse, uma ideia contrária, que ousasse colocar o mundo ideal em questionamento. Era o triunfo da intolerância. O triunfo da maioria.

Paulo Leierer

Escreve e dirige (tirou sua carta em 2003). É apaixonado por cinema desde que viu Esqueceram de Mim" e morre de vergonha de escrever em terceira pessoa."