Para nós, pessoas brasileiras, nossa pátria muitas vezes é indistinguível da nossa língua.

Nesses casos, assim como o Patriotismo, a língua portuguesa também pode ser uma prisão.

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Língua e identidade

Uma nação, apesar de abstrata, geralmente tem uma data de criação bem definida na história (quase sempre, convencionada) e, muitas vezes, um final concreto e até trágico.

Já uma língua é algo que se perde no tempo indefinido: elas surgem e somem, mas nunca têm data de início e raramente data de término.

De certa maneira, nosso idioma é uma porta que nos conecta ao infinito, que nos coloca em irmandade com uma multidão ao longo das eras, pessoas que viveram e morreram em todos os continentes, que tinham tão pouco em comum conosco… mas que amavam, trabalhavam, fofocavam em português.

Talvez por isso, nossa língua é um dos principais fatores que consolida as comunidades nacionais imaginadas. Talvez por isso, somos são tão defensivas em relação a nossas línguas.

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O português, uma língua global

O português é falado por 260 milhões de pessoas (sendo que 210 milhões como primeira língua) e é o idioma oficial de dez países, em todos os continentes. Em vários países da África e Ásia, é usado como língua-franca, possibilitando o contato entre grupos linguísticos de raízes as mais diversas.

Em regiões de presença portuguesa historicamente forte, a língua ainda é amplamente falada: Goa, Diu, Málaca, Zanzibar, Sri Lanka, Andorra, Luxemburgo, Namíbia, Paraguai e, por que não?, Boston e Newark, nos Estados Unidos. (No Path, trem urbano entre New Jersey e Nova Iorque, escuta-se mais português do que inglês, em grande parte aliás pelo volume.)

Além disso, em países como Zâmbia, Uruguai e Argentina, o ensino de português é obrigatório nas escolas.

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Timor-Leste: o português como língua de guerra

No Timor Leste, por exemplo, colônia portuguesa por quatrocentos anos, o idioma português foi proscrito pelo conquistador indonésio por trinta anos. Era proibido até mesmo possuir livros em português. Duas gerações de timorenses cresceram sem falar português.

Ainda assim, quando o país finalmente tornou-se independente e seu novo Parlamento, democraticamente eleito, decidiu qual seria a língua oficial do novo país, o português foi escolhido.

O lobby da Austrália, vizinho e maior parceiro comercial, em prol do inglês foi forte. Afinal, as duas gerações que cresceram proibidas de falar português se educaram falando parcialmente inglês.

 

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Luis de Camões

O lobby pelo tétum, a mais falada das línguas nativas à ilha, também foi forte. Afinal, não era uma língua europeia, imperialista, imposta. (Mas e todas as outras línguas locais?)

Finalmente, decidiu-se pelo português, não só por ter sido a língua histórica do país pelos últimos séculos, por ter sido a língua da resistência à Indonésia mas também, muito importante, por ser uma língua global, consolidada, com tradição científica, que poderia ser usada tanto para escrever uma constituição nacional quanto um manual de engenharia química.

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África lusófona: o português como língua do colonizador

As duas principais nações africanas de língua portuguesa, Angola e Moçambique, com um total de quarenta milhões falantes, estão em momento cultural exuberante, produzindo excelente literatura pelas mãos de gente como Mia Couto, Agualusa, Pepetela.

Quarenta anos depois de suas independências, agora finalmente livres do ranço imperialista colonial português, essas nações podem, ao mesmo tempo, abraçar sua herança cultural lusitana e, também, mesclá-la livremente à rica cultura local tradicional milenar africana, produzindo assim uma literatura nova, própria, única.

Mia Couto, especificamente, está fazendo acrobacias com a língua portuguesa que seriam impensáveis algumas décadas atrás.

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Portugal: o português como língua europeia

Portugal também vive um excelente momento. Depois da Revolução dos Cravos, de perder as colônias africanas e das difíceis décadas de setenta e oitenta, os portugueses estão vivendo literalmente uma renascença cultural.

Por um lado, a distância temporal está permitindo que a literatura finalmente revise criticamente e faça as pazes com a presença portuguesa na África – basta citar alguns excelentes livros de Lobo Antunes, como “As Naus” e “Esplendor de Portugal“.

Por outro, finalmente livres do seu império e da sua heroica vocação marítima, e agora membros da União Européia, a cultura portuguesa está, talvez pela primeira vez desde que Henrique o Navegador tomou Ceuta em 1415 e deu início aos Grandes Descobrimentos, se voltando para dentro, explorando sua vocação européia, discutindo afinal o que existe de europeu no Portugal.

Para não falar de toda uma novíssima geração explorando não apenas esses temas mas também a crescente europeização de Portugal.

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Brasil: o português da nova classe média leitora

Já o Brasil, por seu lado, não tem nenhum escritor da estatura de Mia Couto ou Lobo Antunes, levando a língua portuguesa ao seu limite. A cultura brasileira, já consolidada e estável, não está passando por nenhuma dessas dramáticas eras históricas que deram origem à exuberante produção contemporânea em Portugal e nos países africanos de língua portuguesa.

Nossa revolução é outra: somos 80% dos falantes de português, em um país estável, consolidado, de economia forte, de mercado consumidor gigantesco. Apesar das cassandras que desde sempre clamam a morte do mercado editorial brasileiro, esse mesmo mercado só faz crescer, consistentemente, há décadas. Dados de 2010 mostram que os brasileiros estão lendo mais do que nunca: 4,7 livros por habitante, sendo 8,3 por habitante com formação superior.

Os quarenta milhões de brasileiros que saíram da miséria nos últimos anos (um pouco menos do que a população conjunta de TODOS os outros países falantes de português juntos) não estão consumindo somente carne, mas também cultura.

Somos nós que, ao comprá-la e lê-la, vamos viabilizar a nova produção literária em língua portuguesa: a melhor receita para estimular a nascente literatura moçambicana é colocá-la nas estantes do Brasil.

O mercado consumidor da língua portuguesa somos nós.

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A tal riqueza do português

Quando nós, pessoas brasileiras, estamos de bom-humor e nos sentindo generosas, gostamos de pensar que o português é uma língua bonita e rica; de vasto vocabulário, e repleta de palavras incríveis e exclusivas que só nós temos; e tão complexa e sofisticada que é difícil de aprender.

Bem, todas temos direito a nossas afeições sentimentais, mas, se achamos realmente que existem critérios objetivos, científicos ou linguísticos para definir a "riqueza" e "dificuldade" de uma língua, aí estamos nos enganando.

Para começar, como definir esses conceitos?

O que é uma língua rica ou difícil? Aliás, seria possível existir isso de língua rica ou língua difícil como critério científico ou objetivo? Quer dizer então que existiriam línguas pobres e línguas fáceis? Quem decidiria quais são as línguas ricas e as pobres, as fáceis e as difíceis? (Não as linguistas: elas não passam nem perto dessas conversas!) Quais seriam os critérios? Ter mais ou menos tempos verbais? Ter mais ou menos vocábulos? Por falar nisso, como contar vocábulos?

 

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Machado de Assis

Escuto muitas pessoas brasileiras verbalizando preconceitos linguísticos como esses. Quase sempre, são pessoas que arranham um pouco no inglês ou no espanhol e não falam nenhuma outra língua fluentemente: então, quando falam que o português é "mais rico" ou "mais difícil", ou mais isso ou mais aquilo, estão comparando-o ao inglês, a língua estrangeira com a qual tiveram mais contato.

Ou seja, estão comparando sua língua-mãe, que usam todos os dias e na qual pensam e sonham e transam, com outras línguas que provavelmente manejam de formas precárias e superficiais.

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O Dublador do Salsicha

Segundo dizem as pessoas brasileiras, a dublagem brasileira seria a melhor do mundo.

Por exemplo, a voz do Salsicha, do desenho Scooby-Doo, seria muito melhor em português do que inglês.

Mas a voz do Salsicha em português, falando na língua nativa que dominamos completamente, com um vago sotaque nordestino cheio de conotações culturais familiares, conjura em nós algumas das melhores lembranças de nossa infância compartilhada.

A voz do Salsicha em inglês, por outro lado, falando uma língua estrangeira que nunca dominaremos tão completamente quanto a nossa, com um forte sotaque sulista norte-americano cheio de conotações culturais que desconhecemos, ouvida poucas vezes e depois de nós já adultas, não nos evoca nenhum vínculo afetivo, nenhuma memória carinhosa. É só uma voz.

O Salsicha brasileiro não é superior ao norte-americano pelas qualidades técnicas e objetivas de ambas dublagens: ele nos soa melhor porque somos NÓS que estamos ouvindo.

Talvez fosse melhor simplesmente admitirmos que não temos como fazer julgamentos qualitativos objetivos nesses tipos de situação.

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Pequenas arrogâncias linguísticas

Do mesmo modo, quando uma falante bate no peito para afirmar que a sua língua nativa é melhor, mais rica, mais bonita, mais difícil do que outra, quase sempre isso revela somente o seu preconceito linguístico e o seu desconhecimento de outras línguas.

Por exemplo, gostamos de dizer que só a língua portuguesa tem a palavra "saudade".

Bem, pra começar…e daí?

Mas não é verdade. Diversas línguas possuem vocábulos semelhantes ou equivalentes à "saudade" e outras exprimem o mesmo conceito por outros métodos: "tenho saudades de casa" e "I miss home" são duas maneiras de dizer rigorosamente a mesma coisa e não faz sentido considerar uma forma mais rica ou mais pobre que outra. (Sobre a palavra "saudade", vejaesseslinks.)

Já ouvi pessoas brasileiras falando que o português é melhor e mais sofisticado, que dá pra falar mais coisas em português, porque teríamos tempos verbais que o inglês não tem, como o subjuntivo.

 

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Guimarães Rosa

Mas o inglês tem o present perfect ("I have lost my key"), para o qual não existe equivalente em português. E daí?

Naturalmente, essa arrogância linguística não é exclusividade brasileira.

Faz pouco tempo, os Estados Unidos coletivamente celebraram o "nascimento" da milionésima palavra do inglês. Nada adiantou todas as linguistas do mundo apontarem que não existe como contar vocábulos e que esse tipo de conta não quer dizer literalmente nada.

No Brasil, por outro lado, já ouvi diversas pessoas se gabarem de que o português seria mais rico, mais difícil, mais complexo do que o inglês, justamente por ter mais vocábulos.

E, de fato, se você busca na internet, vai encontrar muita gente afirmando que essa ou aquela língua tem tantos mil vocábulos.

Fica a dúvida: como contaram?

"Contar", "contei", "contamos" contou como uma ou como três?

"Três", "três-em-um" e "menage à trois" contou como uma ou como três?

"Loiro" e "louro" são duas palavras, ou duas variações ortográficas da mesma palavra? Aliás, se contaram como duas, então lo(i/u)r(a)(o)(as)(os), alo(i/u)rad(a)(o)(as)(os) lo(i/u)ríssim(a)(o)(as) contam como vinte e quatro?

Mais importante, quem tem tanto tempo livre para embarcar nesse tipo de empreitada?

Ainda mais importante, e daí? A língua que tiver mais variações de loiras é melhor, mais rica, mais sofisticada que as outras? Por quê?

(Esse artigo da The Economist demonstra a futilidade de contar quantas palavras uma língua tem. Mas a melhor maneira de demonstrar a total futilidade de qualquer debate é linkando algum fórum aleatório da internet onde ele esteja sendo discutido.)

Na prática, entretanto, se houvesse como contar vocábulos, e se fizesse sentido uma conta dessas, o inglês provavelmente teria muito mais vocábulos do que o português.

Não por ser mais rico, mais complexo, superior, melhor, etc, mas simplesmente por ser mais falado, especialmente como segunda ou terceira língua. Por ter mais presença em mais países e mais continentes. Por estar, portanto, mais exposto a adquirir novos vocábulos das diversas culturas com as quais interage.

Ou seja, o inglês seria "maior" e "mais forte" (sic) justamente por se abrir mais àquilo que os patriotas linguísticos mais temem: a invasão de palavras estrangeiras.

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A tal fraqueza do português

Quando nós, pessoas brasileiras, estamos de mau-humor e nos sentindo defensivas, gostamos de pensar que o português é uma língua coitadinha, vira-lata e combalida, sendo invadida pelo malvado e imperialista inglês e precisando inclusive de proteção legal para não ser conquistada por palavras estrangeiras.

Ironicamente, muitas vezes as mesmas pessoas que acham que o português é mais rico do que o inglês querem também proteger o português do elemento que mais expande, para bem ou mal, o alcance de uma língua: a incorporação de palavras estrangeiras.

Há pouco tempo, o deputado comunista Aldo Rebelo tentou passar um projeto de lei defendendo a língua portuguesa dessa pretensa invasão de estrangeirismos. Não por acaso, nenhuma, nem uma única, que eu saiba, linguista apoiou a iniciativa.

Afinal, o que é um estrangeirismo? E exatamente por que são nocivos?

 

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Gilberto Freyre

Em seu romance A pata da gazela (aliás, o romance mais fetichista da literatura brasileira), lançado em 1870, José de Alencar, talvez nosso mais canônico escritor e possível inventor da literatura brasileira, termina pedindo desculpas por usar palavras estrangeiras aportuguesadas, como "champanhe", e explica:

 

"Assim fizeram nossos antepassados, escrevendo… trenó, bufete e tantas outras palavras de origem francesa."

Naturalmente, nosso primeiro romancista, sempre polêmico (seu blog teria sido uma delícia) não incluiu uma nota dessas à toa, mas por saber que receberia fortes críticas por sua escolha de palavras.

Leia também  Blues: Os anos dourados de B. B. King

No século XIX, a discussão era a mesma de hoje: por que usar palavras estrangeiras, como chauffeur e abat-jour, se poderíamos usar palavras tradicionalmente portuguesas como motorista, condutor ou lâmpada?

Mas o que são palavras "tradicionalmente portuguesas"?

Afinal, "motorista" vem do francês "moteur", condutor do inglês "conductor" e lâmpada do grego "lampás", pelo latim "lampada".

Quais seriam então essas míticas palavras não estrangeiras? Quais seriam as palavras puras? As palavras boas? Faz sentido essa distinção?

Na prática, o que o argumento da defesa da língua está propondo é fossilizar o idioma em algum ponto aleatório do tempo, normalmente no passado próximo, efetivamente negando que as gerações atuais e futuras usem e disponham de sua língua com a mesma liberdade que todos os falantes do passado sempre usaram e dispuseram dela.

Afinal, se os antepassados de Alencar tiveram a liberdade de transformar buffet em bufete e traineau em trenó, se a geração de Alencar teve a liberdade de transformar abat-jour em abajur e champagne em champanhe, se as gerações posteriores tiveram a liberdade de transformar goal em gol e penalty em pênalti, por que logo a nossa geração seria impedida de transformar to delete em deletar ou stencil em estêncil?

Por que esse corte arbitrário? Por que fossilizar a língua hoje e não vinte anos atrás ou vinte anos a frente? Se proibirmos deletar, por que não também deletar da língua outros estrangeirismos como chofer, abajur, trenó e lâmpada? Onde parar? Qual será a data de corte que separa os bons estrangeirismos dos maus estrangeirismos?

Estrangeirismos do século XXI(deletar, printar): errados, terríveis, imperialistas, ameaçadores. Vamos proibir todos!

Estrangeirismos do século XX(gol, pênalti): legais, lindos, fazem parte da língua.

Estrangeirismos do século XIX(chofer, abajur): ah, estamos usando há tanto tempo que nem parecem mais estrangeirismos!

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Às vezes, argumenta-se que não tem porque usar palavras como deletar ou printar, se temos excluir ou imprimir.

É verdade. Não TEM porque.

Mas as línguas não funcionam assim.

Os falantes não fazem só o que precisam: fazem o que QUEREM com a língua que possuem.

 

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Mia Couto

Ninguém fala "scanner" de sacanagem, por entreguismo, para foder o português, porque estava na folha de pagamento da CIA, etc.

Uma língua não é um símbolo nacional que tiramos da gaveta somente em datas comemorativas, um Brasão da República ou um Hino à Bandeira.

Temos orgulho de nossos martelos? Não, nossos martelos têm apenas que enfiar os pregos na parede. Se fizerem isso, já está bom demais.

Pois uma língua nada mais é do que uma ferramenta, um instrumento vivo e orgânico, que tem que ser fácil de usar todos os dias e cuja existência só faz sentido se estiver afinado às necessidades concretas de suas usuárias.

Se preferem usar deletar em uma língua que já tem excluir, se preferem usar motorista em uma língua que já tem condutor, é porque alguma razão devem ter, é porque a velha palavra não exprimia tudo o que desejavam exprimir, é porque viam algum valor na nova palavra.

(Por acaso, nos dois exemplos acima, a razão é a mesma. Excluir e condutor são palavras muito amplas. Os neologismos deletar e motorista servem para restringir essas palavras, remetendo seu novo significado a novas tecnologias recém-surgidas: deletar é excluir em um ambiente computadorizado, motorista é quem conduz um veículo motorizado.)

Talvez o lojista considere "delivery" mais sonoro que "entrega em domicílio".

Talvez somente ocupe menos espaço no flyer — ops, na filipeta.

Talvez simplesmente seja uma tentativa de fazer seu negócio parecer mais sofisticado, mais internacional.

Quem de nós tem autoridade moral para criticá-lo, questioná-lo, julgá-lo, proibi-lo?

Todas nós usamos as palavras que consideramos mais apropriadas para atingir os nossos fins, sejam eles transmitir conteúdo, sugerir impressões, construir identidades.

Somos todas igualmente proprietárias do nosso idioma.

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Séculos de intensa francofilia não destruíram o português.

Chauffeur foi aportuguesado, virou chofer, hoje convive em pé de igualdade com motorista e condutor. Ninguém mais lembra a origem dessas palavras. São todas igualmente portuguesas.

Não existe língua sem influências estrangeiras – a não ser que seja uma língua morta.

Nossas antepassadas também chiavam contra chofer, também bradavam o fim da língua e, olha só, nada aconteceu.

Estamos aqui, eu e você, eu escrevendo e você lendo esse texto em português.

Daqui a cem anos, talvez sale seja uma palavra tão brasileira quanto pênalti, chofer ou xampu.

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A língua portuguesa não precisa ter medo de nada

Uma língua que, na largada, produziu "O Auto da Índia" e "O Auto da Barca do Inferno", não precisa que ninguém a defenda. Gil Vicente sozinho defende e justifica nossa língua. Com Camões por um lado e Fernão Mendes Pinto pelo outro (ficando só no Portugal do século XVI!), não precisamos de mais ninguém. É nosso dream team, em nada diminuído pelo fato de eu ter acabado de descrevê-la com uma expressão inglesa.

O dream team da língua portuguesa teria várias participantes do Brasil, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Gilberto Freyre e Clarice Lispector. E, para não dizer que fico somente no passado, duas das maiores pessoas autoras vivas em qualquer país escrevem em português: Lobo Antunes e Mia Couto.

 

Lobo Antunes
Lobo Antunes

Enquanto houver tanta produção cultural em português, a língua portuguesa estará viva e pujante. Não serão meia dúzia (ou vinte milhões) de lojistas usando delivery ao invés de entrega que vão mudar isso.

A língua portuguesa somente estará combalida quando a produção cultural lusófona estiver combalida.

E, quando isso acontecer, também não será nenhum problema.

Afinal, vamos todas morrer. Nós mesmas. Nossas filhas e as filhas delas. Nossos países. Até nosso sol.

Por que não nossas línguas?

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O Brasil não é dono da língua portuguesa

Podemos ser a maioria das pessoas falantes mas língua portuguesa não é sinônimo de Brasil.

Existem diversas sociedades que também tomam o português para si. Que vivem, amam, morrem, guerreiam, sonham em português. E é uma vergonha não consumirmos praticamente nenhuma cultura desses países.

Quantos livros angolanos lemos? Quantos filmes portugueses assistimos? Quantas músicas cabo-verdianas ouvimos?

Países populosos, continentais e de economia robusta geralmente sofrem de um certo provincianismo insular, arrogante e autossuficiente, quase inevitável.

Uma belga, uma uruguaia ou uma coreana jamais será tão provinciana quanto uma brasileira, uma norte-americana ou uma chinesa.

Para pessoas belgas, uruguaias ou coreanas, o exterior sempre será uma presença forte, constante, poderosa.

Já pessoas brasileiras, norte-americanas ou chinesas ainda podem, se quiserem, viver vidas quase insulares, consumindo majoritariamente a cultura de seu próprio país, só falando sua própria língua, sentindo "o exterior" apenas como uma vaga e distante entidade com muito pouco impacto na vida cotidiana.

O patriotismo sempre pode ser uma prisão. Para uma pessoa brasileira, pela maior facilidade de se deixar cair em uma vida insular, o risco é um pouco maior.

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A Língua Como Cultura

Uma língua não é só uma língua. Precisamos defender o português, dizem os patriotas da língua, para salvar a cultura brasileira.

Mas uma coisa pouco tem a ver com a outra.

As poesias que Fernando Pessoa escreveu em inglês e os autos que Gil Vicente escreveu em espanhol são menos parte da literatura portuguesa do que aqueles que escreveram em português?

Pessoas autoras cubanas, que muitas vezes nunca nem pisaram em Cuba, escrevendo em línguas que não o espanhol, criaram no exílio algumas das obras mais importantes da literatura cubana, profundamente imersas na cultura do país e nos diálogos transculturais que a caracterizam.

Afinal, o que é a cultura brasileira? O que a define? O que a limita? Só existe Brasil se for em português?

Muitos dos bandeirantes que roubaram e ocuparam meia América do Sul em nosso nome falavam apenas tupi-guarani.

O romance "Inocência "e as memórias "A Retirada de Laguna", escritos em francês pelo Visconde de Taunay, estão entre os mais importantes livros da literatura brasileira no século XIX.

Muitas cidades brasileiras fundadas por imigrantes passaram às vezes mais de um século se comunicando entre si quase exclusivamente em seus idiomas originários.

 

Cecília Meireles
Cecília Meireles

Durante a Segunda Guerra, entretanto, o governo fascista de Getúlio Vargas começou um massacrante e bem-sucedido processo de imposição do português e de perseguição a outras línguas. (Hoje em dia, quantas pessoas ainda falam alemão como língua-mãe em Blumenau?)

Mas consideremos uma poesia, escrita na década de 1920, por uma poetisa brasileira que viveu em nosso país por toda a sua vida e cujos pais, mães e avós também nasceram e passaram toda a vida aqui. A língua-mãe da nossa poetisa, entretanto, era o alemão e foi nessa língua que escreveu a tal poesia.

Essa poesia é menos literatura brasileira do que qualquer coisa escrita por Castro Alves ou Cecília Meireles?

Poesias como essa de fato existiram. Ainda existem, fisicamente, em arquivos e bibliotecas públicas de Blumenau e Joinville.

Mas é como se nunca tivessem existido.

É como se toda essa produção artística, todas essas diferentes maneiras de entender, de cantar, de produzir arte sobre o Brasil, jamais tivessem sido tentadas. Foram varridas da história. Nunca são citadas nas antologias literárias escolares. Kaput. Finito.

Assim como não chegou até nós a literatura oral produzida em tupi-guarani pelas habitantes originais dessa terra.

Assim como não chegou tanta coisa que foge da normatividade exclusivista lusófona.

Assim como não chegou quase nada que ousa interpelar um de nossos mitos fundamentais e fundacionais: de que vivemos em um país monoglota.

Em vez de temermos essas malvadas línguas estrangeiras que ameaçam nos invadir e destruir nossa cultura, talvez fosse o caso de percebermos quantas outras manifestações culturais, artísticas e linguísticas foram sufocadas por essa nossa língua, que para nós parece tão bondosa e benéfica, tão coitadinha e tão digna de proteção, tão merecedora do nosso patriotismo.

Talvez fosse o caso de percebermos que nossa cultura vai muito além de nossa língua.

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Esse texto faz parte da Prisão Patriotismo. Se você gostou, dá uma olhada.

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O encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido. São elas:

verdade // dinheiro // trabalho // privilégio // sexismo // racismo // monogamia // religião // patriotismo // escolhas // respeito // certezas // os outros // medo // ambição // felicidade // narcisismo

Agora, estou promovendo o encontro “As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.

O encontro “As Prisões” é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 13 horas.

O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)

Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.

Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.

Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.

 

Aviso sobre linguagem e gênero

Meus textos buscam usar uma linguagem de gênero sempre neutra. Todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. Se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. Por favor, avisem e vou corrigir. Para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.

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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu