Dez e vinte da manhã de um domingo com muita ressaca, levantar da cama foi duro. A sala estava uma zona, com copos descartáveis empilhados nos espaços livres das estantes, cinzeiros cheios sobre os móveis, e o chão grudento como se alguém tivesse derrubado qualquer bebida e passado um pano só para dizer que o fez. O dia estava bonito, em todo caso. Parecia estar, pelo menos, a julgar pela luz que entrava através da cortina.
Queria estar na praia.
Deixei o café passando e tratei de juntar as pilhas de copos, para começar. No banco ao lado da porta estavam os desembrulhos do início da festa: um moleskine, uma meia-calça e um livro do Jorge Amado, entre outras riquezas.
Sentei em respeito à dor de cabeça que ameaçava aparecer, e servi meu café enquanto folheava as páginas novas. A orelha do livro contava a história de conflitos coronelistas pela posse de terras cacaueiras da Bahia. Nunca fui à Bahia, só vi fotos. No romance, a região de Ilhéus é o núcleo do enredo, precedendo causa de assassinato, inclusive. Parece interessante. Meu irmão já foi a Ilhéus, se não me engano. Ou me engano, e eram de Porto Seguro aquelas fotografias muito mal tiradas que ele nos mostrou.
Queria me lembrar da pessoa que me presenteou com este livro, pois foi um gesto incrivelmente delicado. Minha tese de mestrado começando a tomar forma, ainda busco algumas referências bibliográficas. O tema envolve comunidades agrícolas do Nordeste e a memória coletiva desses lugares. Trabalhar com memória tem sido extremamente enriquecedor.
No dia em que meu irmão voltou de viagem, queimaduras solares no corpo todo, terminou de nos mostrar as fotos e distribuiu nossas lembranças – a minha, de mamãe e de papai. Aí aconteceu uma coisa engraçada. Ele trouxe à mamãe uma coruja feita de conchas do mar, ou algo assim, e lembro que ela odiou. Na hora ela não disse, é claro, mas perguntou por que é que estava ganhando uma coruja.
A partir daí, as corujas sempre foram, para mim, uma ideia confusa. A vida toda achei que as treze ou quinze esculturinhas dispostas no beiral da janela da cozinha fossem capricho de mamãe. “Trouxe mais uma para a sua coleção”, meu irmão explicou. “Não sou eu quem gosto de corujas”. Como? “Obrigada, mas isso é coisa do seu pai”. Negação dos rebentos. “Não, é coisa sua. É você quem gosta…”
Não era.
Acompanhei o diálogo calada, mas aquilo tudo me pareceu uma baita sacanagem. Fiquei decepcionada com a confusão. Meu irmão também, dava para ver. Jamais, a vida toda, ouvi uma manifestação da boca de papai a respeito de qualquer ave notívaga que fosse. Fiquei incomodada.
Várias vezes, nos anos que se seguiram, voltou-me aquela reminiscência, cada vez travestida de um sentimento diferente. Hoje ela é afetuosa. Branda. Cai bem com esse domingo de luminosidade. Nunca soube explicar o que é que essa lembrança encarnava, mas, na verdade, acho que nem me dava conta de que sequer encarnava algo.
Acho que agora entendi tudo. Entendi como funciona a memória, oras, costurei quarenta páginas acadêmicas sobre ela. Para mim, neste caso, tratou-se de uma simples ressignificação, o que já sabemos ser algo recorrente quando o presente se torna passado. O passado deixa tudo mais belo com suas injustas atribuições de irrevogável e irretornável. Mas não era só isso. A memória, antes de tudo, é um instrumento de apropriação, e o tempo consolida isso nela. Passar anos afora com alguém é como uma permissão velada para que nos apropriemos da memória alheia – e o inverso também acontece.
Décadas de confirmações, declarações, divergências e ciclos depois, discernir quem é e quem não é o dono oficial de um feito, gesto ou gosto é só gastura. No fim das contas, é uma tarefa inútil. Nunca o “o que é seu é meu” e o inverso justiceiro me pareceram tão genuínos. Se aconteceu e teima em acontecer com os escritores, historiadores e pensadores da humanidade, como haveria de ser diferente num relacionamento que já completou mais de trinta bodas? Há intertextualidade num matrimônio, absolutamente.
Mamãe jamais teve a intenção de apropriar-se de um capricho de papai, mas o fez sem dar-se conta. Certamente isso ressoa até hoje em aspectos diversos de suas vidas a dois. Seu instinto materno é desbravador, voraz, e desde sempre se manifesta no controle de todas coisas pertinentes à casa e à família. Depois reduz-se ao ressentimento pela responsabilidade. “Não quero mais”. “Você é muito mimado”. “Não sou eu quem gosto de corujas”.
Mas era.
É claro que era. Só ela olhava para as corujas. Só ela lhes tirava o pó também, assim como de qualquer elemento da casa. Até os filhos, era ela quem lustrava. É claro que era ela quem gostava de corujas. Talvez hoje não seja mais, e esse esmero tenha esmorecido assim como vários outros que pertencem ao início de um casamento, mas se dissolvem no dilúvio das dúvidas e arrependimentos que surgem com o passar dos anos.
Hoje o governo da casa é mais imprescindível que nunca. Um mal terrível a assolara, um mal enfermo, cujo nome é tabu e sinônimo do estrago que se alastra. Ela foi afetada por tabela, da mesma forma que um órgão é infectado quando o problema reside no outro. Era o câncer de seu marido irradiando seus efeitos e ecoando suas dores aos sonares mais atentos. No caso, o sonar era compaixão de uma esposa e mãe que sempre se anulara. Ao menos, renunciara a todos os aspectos de si que não competiam ao posto de esposa e mãe.
É claro que hoje é ela a maior enferma da casa. “Não há nada mais forte que a compaixão. Nem a sua própria dor pesa tão fortemente como a dor que se sente por alguém, pela dor de alguém amplificada pela imaginação e prolongada por centenas de ecos”, disse o filósofo. Invejo muito mamãe. Só quem é capaz de externalizar tamanha compaixão é que retribui a si mesmo o próprio amor absoluto que anseia em dar aos outros, antes mesmo que os outros tenham o tempo de reconhecê-lo. Em sua ternura, mamãe passou a vida sendo contagiada por tabela pelo amor que ela própria distribuía sem parcimônia.
É tão bonito. Combina com esse domingo de luminosidade.
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