Conversar é inegavelmente uma arte. Arte que, aos poucos, vai visivelmente se perdendo. “Trocar ideia”, quem ainda lembra como se faz? “Bater papo” é coisa de que século, mesmo?

Sem querer dar uma de Sun Tzu do diálogo, parece imperativo, inadiável, identificar algumas das incontáveis posturas e tipos presentes numa conversação.

Para tanto, não precisamos ir longe: nada de filosofia, política ou religião. Supondo que você, de sopetão, despeje um belíssimo “Carquei forte a Gisele Bündchen ontem à noite” numa roda de amigos, provavelmente te aguardam (numa primeira compilação) os possíveis resultados:

“Carcou? Na Gisele? A modelo?”

Aguador de chope

“Gisele quem? Pele e osso? Tô fora. Mulher pra mim tem que ter sustança.”

Se você realmente necessita da aprovação alheia pra ser feliz, não é aqui o lugar. Caso contrário, vale dizer “Olha, eu me diverti e não foi pouco”, ou, se você não tiver Zeus no coração, simplesmente perguntar “E você, comeu quem mesmo?”.

Has-been

“Já fui bom nisso. Na minha época a mais cocota era a Twiggy. Comi muito.”

Melhor providenciar rápido o remedinho debaixo da língua do vovô antes que se inicie pela milésima vez a mesma velha história. Conhece aquela do Serguei com a Janis Joplin? Então, validade igualmente vencida.

Onisciente

“Eu já sabia!”

Terrível. Claro, isso serve pra absolutamente qualquer coisa, até pra quando você acaba de divulgar o verdadeiro paradeiro do Belchior. Saída interessante, ainda não muito bem testada, é dizer “Beleza, então vou te poupar dos detalhes” e descobrir se foi mesmo a curiosidade a matar o gato.

Sequestrador de assunto

“Putz, e eu que fiquei preso na 23 de Maio?”

Sim, eu também sei que não tem nada a ver. Mas é preciso entender que há pessoas para as quais não dizer nada, ficar em silêncio, é sentença de morte. Responder é cair na armadilha, e o resgate é impagável.

“It’s not about you, dude. It’s never about you. Just sit and relax.”

Esgrimista

“Gisele? Que coincidência, peguei anteontem!”

Problema nesse caso é a escalada argumentista que uma réplica, ou tréplica, provoca. Se serve como consolo, muito pior é a variação “Meu pirulito é bem maior que o teu”, do tipo “Gisele? Essa eu ensinei a trepar”, ou a modalidade invertida “Quanto pior melhor”, para a qual provavelmente teríamos “Que coincidência, tomei uma porrada do Tom Brady!”.

Leia também  [18+] Bom dia, Marine Vacth

Isso tudo, mais diversas possíveis combinações das técnicas descritas, são a receita para o fracasso de qualquer conversa. Ninguém ouve ninguém, é isso? Ficam uns esperando que os outros parem de falar pra então retrucar? Ping-pong argumentativo?

A arte quase perdida do conversê

Tenho pra mim que o problema tem raiz no inchaço dos egos, transformando conversê em disputa. Discordância é crime, opinião é taco de beisebol. Bora trollar, falar alto, encher o saco, abusar do name-dropping, socar a mesa e fazer da paciência alheia o sparring da vez.

Não é coisa das mais fáceis compartilhar com os outros uma conquista. Pequenos feitos são imediatamente relativizados, grandes vitórias são automaticamente encaradas como ofensa pessoal. A julgar pelo que por aí se vê, elogiar é sinônimo de auto-flagelação, parabéns é diploma de desimportância.

Humildade? Não trabalhamos.

Claro, se você estiver absolutamente na merda, não faltará quem te ouça, pelo menos enquanto você ainda estiver sangrando no meio das ferragens do carro debaixo do caminhão, enquanto não perde a graça. Diminuir a velocidade pra ver melhor a tragédia alheia no acostamento é o passatempo predileto de muita gente, que, certeza, só se solidariza pelo conforto pessoal que dá ver alguém em situação pior que a própria.

“Você está mal? Fale mais sobre isso para nos sentirmos melhor…”

Lícito afirmar que, nos dias de hoje, qualquer coisa que se diga pode – e será – usada contra você, queira você ou não. E sem esperar pelo tribunal.

Minha esperança é que esse negócio de conversar ainda tenha uso num mundo em que você de repente se vê sacando o smartphone do bolso e recorrendo à interação virtual com a pessoa que está sentada na tua frente. Mídia social, socializemos pra já. Que não seja o autismo o way of life do homem moderno.

Garção, mais um chopps que o papo tá bom.

Erico Verissimo

Serial father, sistemeiro desenvolvimentista computacional, pessoa humana nas horas vagas. Ateu praticante, corintiano devoto, sempre com fé na vida. Moço casadoiro, aliança no dedo já há uma década. Antecipando a crise dos 40. Jênio incompreendido, vidraça fantasiada de estilingue. De tudo um pouco e mais um pouco em <a>verossimil.wordpress.com</a> ou em @verossimil."