Em preto e branco, com o paletó nos ombros tipo Frank Sinatra, cabelo desalinhado, em uma foto que não poderia ser capturada por outro que não seu amante Robert Mapplethorpe, Patti Smith surgiu de rompante declarando com vigor poético sua posição transgressora: “Jesus died for somebody’s sins, but not mine” ou “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus”, em tradução livre.

Essa é nada mais, nada menos que a primeira frase que emite em seu álbum de estréia – Horses –, produzido por John Cale, de Velvet Underground.

Estamos somente na primeira faixa, Gloria, que acabou se transformando em algo além de um simples cover de Van Morrison. Horses, conceituado por alguns críticos como um dos melhores álbuns de estreia já lançados por um artista, nos oferece ainda mais – um concerto apaixonado que mistura relatos sobre amores exacerbados com o cenário confuso das ruas. Vai de Rimbaud a Jim Morrison e nos arrasta para um horizonte multifacetado, uma perspectiva composta de recortes.

“A gratidão que eu sentia pelo rock and roll por ter me ajudado a atravessar a adolescência difícil. A alegria que sentia ao dançar. A força moral que eu reunia ao me responsabilizar pelas atitudes de alguém. Essas coisas estão todas entranhadas em Horses assim como uma saudação àqueles que pavimentaram o caminho antes de nós.

Em ‘Birdland’, embarcamos com o jovem Peter Reich enquanto ele esperava que seu pai, Wilhelm Reich, descesse do céu e o fizesse nascer.

Em ‘Break it up’, Tom Verlaine e eu escrevemos um sonho em que Jim Morrison, amarrado feito Prometeu, de repente se liberta.

Em ‘Land’, imagens de meninos gays mesclados com cenários da morte de Hendrix.

Em ‘Elegie’, lembrando de tudo, passado, presente, futuro, daqueles que perdemos, estávamos perdendo e acabaríamos perdendo.”

Ao nos apresentar todas as suas referências, Patti Smith narra seu nascimento como pessoa, mulher, cantora e poeta à luz de tais influências, emergindo entre elas de maneira singular para nos falar sobre os anseios e pretensões de uma geração que aguardava um porta-voz para os anunciar.

Antes de acordar em Nova York

Patti Smith nasceu no dia 30 de dezembro de 1946 em Chicago, Illinois, em meio há uma tempestade de neve, logo após a Segunda Guerra Mundial. Era a primogênita da união de um pai ateu e uma mãe religiosa seguidora das Testemunhas de Jeová.

Em 1949 sua família mudou-se para a Filadélfia, onde Patti passou parte da sua infância, até 1957. Foi então que seguiram para Nova Jersey, lugar em que ela viveria por dez anos, até encontrar Nova York, a cidade que lhe acolheria como artista.

Nova Jersey foi um período difícil para Smith. Sua família nunca contou com dinheiro em abundância, o que a levou a largar os estudos aos 16 anos para trabalhar numa fábrica, onde recebia apenas 36 dólares por 40 horas de trabalho semanais. A experiência excruciante foi registrada pela cantora na canção Piss Factory (ou Fábrica de Mijo).

I’m gonna be somebody, I’m gonna get on that train, go to New York City, I’m gonna be so bad I’m gonna be a big star and I will never return

Patti foi mãe aos vinte anos e como as condições do momento não lhe permitiam assumir a maternidade, entregou o bebê para a adoção. contudo, sempre havia livros em sua casa, e sua mãe lhe ensinou a ler esses livros.

Foi a casa cheia de livros e o incentivo da mãe que a salvaram da melancolia, assim como trouxeram-lhe simultaneamente uma sensação de desconforto, inquietação e despertencimento.

“Quando morava em Nova Jersey não tinha tempo para sonhar acordada, a vida era simples, e isso podia ser bom para alguns, mas eu sempre me senti diferente. Eu sabia que havia algo que poderia florescer em mim, mesmo que fosse a minha ruína.”

Bem-vinda, NY

“New York me seduziu, NY me formou, NY me deformou, NY me perverteu, NY me fez.”

Em busca de iluminação, inspiração, caos, sucesso ou fracasso, Patti Smith finalmente desembarcou em Nova York.

A cidade grande não sorriu tão logo assim para ela, que chegou a dormir nas ruas e passar fome até conseguir um emprego como caixa em uma livraria. Mas o que nem ela imaginaria é que essa primeira chance que lhe foi ofertada a levaria em direção ao grande amor da sua vida.

Era verão em New York quando Robert Mapplethorpe entrou na livraria em que Patti trabalhava para comprar um colar persa – já que o lugar, estranhamente, também vendia joias. É claro que, por coincidência, essa era a peça favorita da cantora.

Ela, que sempre sonhou em encontrar um companheiro com que pudesse dividir uma vida de artista, tal como Diego e Frida, confessou que, ao ver Robert, soube que ele era o cara.

Mas Patti só pode se apresentar ao seu futuro parceiro no segundo encontro: um cliente da livraria convidou-a para passear num parque, mas chegando lá ela se deparou com Robert. Na tentativa de fugir do cliente, pediu a Robert para se apresentar como namorado dela para o outro homem. Ele aceitou, e os dois logo se mandaram dali prontos para começar uma história de amor, cumplicidade e companheirismo que se revelaria na arte que ambos construíram.

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Para alguns, o romance dos dois poderia parecer um tanto excêntrico já que Robert era homossexual e estava agora a se relacionar com uma mulher. O amor dos dois não era motivo de dúvida, contudo, e apesar de Patti ter rompido com ele em 69, quando foi morar por um tempo em Paris com a irmã, assim que voltou para NY regressou para seu amor.

Patti e Robert mudaram-se para o Chelsea Hotel, o único na cidade cujo aluguel podia ser pago com arte. Muitos dos artistas da época também viviam no Chelsea, o que contribuiu para que o novo casal de artistas fossem aos poucos se inserindo na cena cultural nova-iorquina

Ávidos por mostrar seus trabalhos a quem admiravam e sedentos por produzir cada vez mais arte, desejo e êxtase, Patti e Robert viveram uma relação completamente livre, onde um estava sempre a apoiar o outro a seguir suas vontades, mesmo que que isso se significasse se envolver física ou emocionalmente com outras pessoas.

Robert foi quem começou incentivar Patti a escrever poemas e a cantar o que sentia, e foi ele também quem financiou seu primeiro single, Piss Factory/Hey Joe, em 1974. Além disso, também foi o artista responsável pela foto mais icônica de Patti até hoje, capa do seu primeiro álbum em 1975.

Depois de Horses, Patti lançou mais dez álbuns de estúdio, sendo o último de 2012, mas só quatro deles foram produzidos antes de Robert morrer devido à AIDS, em 1989. Ele queria ter fotografado Patti para a capa de Dream of life (1988), mas o último retrato que fez da cantora foi dela com sua filha Jesse – fruto de sua união com Fred Smith – no colo.

Robert dizia que a filha de Patti era perfeita e lamentava nunca ter tido nenhum filho com ela. Patti retrucava afirmando que os filhos deles foram os trabalhos. Sobre ele, Patti escreveu:

“Aprendi que, muitas vezes, a contradição é o caminho mais desimpedido para a verdade.”

Mapplethorpe faleceu em março de 89, deixando a artista em Detroit com sua família. Mas Patti não esperava que apenas cinco anos depois, experienciaria mais uma vez o luto pela perda de um amor: em 94 foi a vez de Fred partir. Como se não bastasse, seu irmão Todd também faleceu em seguida.

Seguindo as recomendações de Allen Ginsberg e John Cale, Patti foi procurar ajuda terapêutica para se recuperar da dor, tornando-se, mais tarde, grande incentivadora do tratamento para doenças mentais, defendendo a formação de serviços de atendimento a suicidas por telefone.

Em dezembro de 1995 fez uma breve turnê musical ao lado de Bob Dylan (que foi registrada em um livro de fotografias de Michael Stipe), e quando seu filho Jackson completou 12 anos, Patti regressou ao seu lar, de volta para Nova York.

Alcançando o sonho

Desde que comecei a fazer uso da razão eu tento ser livre, escapar dos limites do mundo, da existência mundana, sair da fábrica.”

Em 1996, Patti retornou para a música e gravou o álbum Gone Again, no qual fez uma homenagem à Kurt Cobain, na faixa About a Boy. Depois desse, vieram mais quatro álbuns, sendo o último de 2012.

Mas quem conhece Patti Smith sabe que ela foi muito além da música. A própria artista confessa que “nunca pensou em cantar numa banda de Rock and Roll, mas que isso acabou acontecendo, já que tudo na sua vida sempre mudou rapidamente” no documentário Dream Of Life (2007) de Steven Sebring, que faz um apanhado sobre a sua vida. Talvez tenha sido esse mundo particular e em constante oscilação que permitiu que Patti se expressasse através de múltiplas facetas.

Mulher, homem, cantora, compositora, atriz, escritora, poeta, pintora, ativista política, filósofa e revolucionária, ela garantiu o reconhecimento de sua arte, tendo recebido inúmeros prêmios ao longo de sua carreira.

Por sua literatura (ela possui 16 livros publicados), conquistou em 2003 o Prêmio de Poesia de Turim, em 2005 foi nomeada pelo Ministro da Cultura da França líder da Ordre des Arts et des Lettres, em 2010 venceu o National Book Award na categoria não-ficção por seu belíssimo relato autobiográfico em Just Kids (Só Garotos) e,  em 2011, foi reconhecida pela Real Academia Sueca de Música por ter dedicado sua vida à expressão da arte nas mais diversas formas. Segundo a Academia, a cantora-poeta demonstrou quanto rock’n’roll há na poesia, assim como quanta poesia há no rock’n’roll.   

Aos 69 anos, considerada pela revista Rolling Stone como uma das cem artistas mais influentes de todos os tempos, Patti Smith conseguiu seu lugar na história do mundo e da arte, e seu grito que fez uma geração inteira levantar não deixa de reproduzir ecos.

Para ler mais sobre Patti Smith

Uma pequena história sobre “Horses”, álbum de estreia de Patti Smith

Patti Smith: De Rimbaud à madrinha do punk

Horses: o álbum de Patti Smith e Robert Mapplethorpe

Patti Smith: Dream of Life

Bruna Regina Pietta Abrahão

Usa batom vermelho. É formada em psicologia. Gosta de dias nublados. Tem um filho chamado Pedro e um gato chamado Fidalgo. Sua banda favorita é Velvet Underground.