“É no intuito de realmente ver, de ver mais profundamente, mais intensamente, para estar, portanto, plenamente consciente e vivo, que desenho o que os chineses chamam de ‘As Dez Mil Coisas’ ao meu redor. O desenho é a disciplina através da qual redescubro constantemente o mundo.” —Frederick Franck, The zen of seeing

Nas oficinas “Desbloqueio do Desenho”, que eu ministro, fica claro que desenhar (falo aqui sobre desenho de observação especificamente) é uma habilidade que se aprende assim como dirigir ou ler.

Diante da dificuldade e da falta de instrução (e da aparente habilidade natural de algumas pessoas para desenhar), muita gente desiste pensando que alguns nascem para desenhar e outros simplesmente nunca vão aprender. 

Auto-retrato, bico de pena

Desenhar é ver

Ao contrário do que se costuma pensar, a dificuldade que as pessoas enfrentam ao desenhar tem pouco a ver com habilidade manual.

Um dos grandes bloqueios da habilidade do desenho é nossa dificuldade em enxergar com clareza. Nossa mente é excessivamente conceitual e se relaciona com o ambiente (pessoas, lugares, objetos…) através do que já conhece: pensamentos, ideias pré-concebidas, rótulos, memórias… Colamos um rótulo naquilo que enxergamos: “árvore”, e dificilmente voltamos a olhar para aquilo com curiosidade. Aquilo que eu penso se torna mais importante do que a percepção visual direta e isso aparece no desenho. Esse processo mental conceitual atrapalha e distorce as percepções visuais. 

Como ter sempre um frescor no olhar, mesmo nas experiências mais simples?

“Quando desenho um círculo eu sinto muita alegria. Penso que a alegria vem de não ter que me preocupar muito. De certo modo, eu sei o que vai acontecer. Uma certa forma circular vai aparecer, então eu não tenho que me preocupar.

Desenhar um círculo é um processo de descoberta, é totalmente imprevisível. Eu apenas sigo o mesmo movimento, mas toda vez, algo diferente aparece.

Sinto que nossa vida é assim, fazemos a mesma coisa, mas o resultado é diferente. Imprevisível.” —A Natureza de desenhar um desenhar, Kazuaki Tanahashi

Um exemplo de como essa interferência afeta o desenho. Aconteceu em aula um dia quando coloquei a frente dos alunos um copo de plástico e pedi para que eles o desenhassem como o estivessem vendo. Uma aluna desenhou o copo assim:

Percebe algo estranho na base do copo? Dê mais uma olhada. Ela desenhou a base do copo reta.

Isso é um conceito: a base dos copos são retas (caso contrário eles não parariam de pé).

O fato é que, dependendo do meu ponto de vista em relação a ele, vou ver uma curva na base do copo. O que essa aluna sabia sobre o copo interferiu na percepção visual direta do objeto.

É muito comum as pessoas terem dificuldade em desenhar objetos em perspectiva porque a perspectiva deforma os objetos e modifica aquilo que a gente conhece sobre eles.

O que fazer então?

O desenho de observação é desafiador porque exige de nós um olhar menos passivo. Demanda que a gente pare de olhar para as coisas de modo automático e passe a ver o mundo de uma forma mais direta e intuitiva. Essa habilidade se aprende e se desenvolve com a prática.

Quero passar para vocês um exercício que possibilita termos uma experiência de ver além dos condicionamentos, criado pela Betty Edwards, autora do livro “Desenhando com o lado direito do cérebro“.

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O exercício consiste essencialmente em copiar um desenho de cabeça para baixo.

Quando olhamos para o desenho de ponta cabeça ele nos causa um estranhamento. Essa confusão vai ser muito útil no processo: ao invés de enxergar a figura, vamos enxergar o desenho como um conjunto de linhas e formas abstratas.

Gosto bastante de passar esse exercício porque ele nos possibilita uma experiência do tipo de olhar que precisamos desenvolver para o desenho de observação: enxergar os objetos como formas.

A Betty Edwards sugere que desenhando assim o resultado ficaria mais parecido com o original porque a percepção das formas ficou mais clara.

Eu não tenho essa preocupação. Se ficar parecido, ótimo, mas para mim o grande valor do exercício está na experiência. Não fique preocupado com o resultado, observe bem o processo!

Prática

Primeiro imprima este desenho: 

Material: papel tamanho A4, lápis e borracha.
 
Antes de começar, uma sugestão: dedique alguns minutos a ficar presente. Coloque o alarme do celular para despertar em cinco minutos e feche os olhos. Sente-se confortavelmente com a coluna ereta, equilibrada, sem encostar na cadeira. Apenas observe o fluxo da respiração, sem tentar controlá-la. Quando perceber que se distraiu, retorne para a respiração. Mantenha-se assim por esse período.

Agora vamos lá: o exercício demora em torno de 30 minutos, o tempo vai variar de pessoa para pessoa.

1. Imprima o desenho (sugiro que você imprima para poder visualizá-lo em relação às margens do papel e se guiar por elas). Tente não olhar para o desenho de cabeça para cima antes de terminar o exercício.

2. Você pode começar em qualquer ponto.

3. Procure enxergar cada trecho do desenho como se fosse uma arte abstrata. Veja cada espaço como uma forma e como uma forma se encaixa na forma que está ao lado e assim por diante. Você vai desenhar como se estivesse montando um quebra-cabeças.

4. Observe os ângulos das linhas, umas em relação as outras e em relação as margens do papel.

5. Pode ser muito útil relacionar diferentes partes do desenho: traçando uma linha imaginária entre elas, relacionando uma forma que está na parte de cima com outra que está na mesma direção na parte de baixo, isso ajudará a localizar as várias partes do desenho e talvez ajude também a manter a proporção.

6. Ao terminar desvire as folhas para ver o resultado.

Ok, podem começar! Contem a experiência e postem seus desenhos aqui nos comentários pra continuarmos conversando.

Inscreva-se para a Oficina Desbloqueio do Desenho em São Paulo

Queria também deixar um convite aqui: estou oferecendo novamente a oficina Desbloqueio do Desenho no dia 07 de maio no Ateliê Coletivo 2e1 na Água Branca.

Mais informações e inscrições aqui.

Aulas de desenho

Também estou abrindo algumas vagas para aulas de desenho em minha casa, quem tiver interesse é só me enviar um e-mail: danielgise@gmail.com.

Daniel Gisé

Nasceu e vive em São Paulo. Formado em artes plásticas pela UNESP. É quadrinhista, ilustrador e web designer, também dá oficinas de desenho e HQ, e é praticante de meditação iniciante. Mais no <a>Facebook</a> e no site <a href="http:// www.danielgise.com">www.danielgise.com</a>."