Me lembro de estar ansioso para encontrar meus oito irmãos e dois chefes para mais uma descida do Parque Estadual da Serra do Mar, no Núcleo Curucutu em São Paulo. Éramos (e somos até hoje) escoteiros do Grupo Escoteiro Bororos.

Fui dormir de madrugada arrumando a mochila na sexta-feira. Separei minhas poucas roupas, saco de dormir, comida, itens de cozinha e rede. Encontramo-nos no Terminal Santo Amaro de ônibus e seguimos em direção a Parelheiros, onde pegamos um ônibus em direção à Marsilac, extremo sul da cidade de São Paulo.

Por conta da distância do centro, a estrada que leva ao parque é extremamente tortuosa e esburacada. Mas isto não era obstáculo para o motorista, que pilotava seu ônibus como se estivesse no Autódromo Interlagos. Descemos do no ponto mais próximo à entrada do parque e começamos a caminhar.

Durante o percurso, muitas risadas e besteiras que somente adolescentes de 15 a 17 anos conseguem proferir.

E eu, contava vantagem do pão que a minha mãe comprara na noite anterior pra eu levar. Era o melhor pão do mundo. Sério.

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Chegada no parque

Chegamos à base do núcleo, todos estavam ansiosos pelo momento em que eu finalmente me calaria e eles poderiam provar aquela maravilha feita de farinha cozida tão perfeitamente. Foi aí que tive minha primeira frustração.

O pão tinha ficado em casa, graças ao meu querido irmão, que, sorrateiramente, o furtou da minha mochila.

Até hoje os presentes relatam que nunca viram uma pessoa tão desolada. Dizem que a minha cara era de cortar o coração, como se algo dentro de mim tivesse morrido. Mas, para minha felicidade, é comum as pessoas acabarem levando mais comida do que realmente come, então não passei muita fome.

Tínhamos decidido descer a serra por outro percurso, que nenhum civil havia feito ainda e levaríamos um guia do parque conosco – que estava em treinamento e precisava aprender o caminho. Contávamos com uma carta topográfica da região, bússolas e um GPS, que pertencia ao guia. Além disso, tínhamos pelo menos seis celulares e um rádio.

Checamos todos os equipamentos e começamos a descida.

Entramos na trilha inicial, de mata não muito densa. Seguimos até dobrar à esquerda, onde acabamos desembocando em um riacho. Tudo parecia normal, de acordo com o mapa.

O primeiro dia de descida acabou bastante rápido e resolvemos jantar um macarrão que estava delicioso, assim como qualquer comida, quando se tem fome. Montamos acampamento e dormimos.

Acordamos bem cedo no segundo dia, tomamos um café da manhã frio e voltamos a caminhar.

Percebemos que estávamos demorando um pouco para achar a trilha e começarmos a descer a serra. Até então estávamos numa altitude incoerente com a quantidade de tempo gasta andando. Passaram-se mais algumas horas e os chefes me chamaram, para ver se eu concordava com a posição que eles supunham que nós estávamos.

O único problema com isso é que ambos somavam mais de trinta anos de experiência em trilhas e caminhadas e com inúmeras descidas de serra nas costas. E eu, tinha apenas dezessete anos e uma cabeça preocupada demais com um pão que nem era tão gostoso assim.

Foi ali que descobri que estávamos perdidos.

Almoçamos tarde, por volta das 16 horas, cientes de que atrasaríamos nossa descida. Uma vez que neste momento, deveríamos estar chegando ao fim da trilha. Racionamos o máximo de comida que conseguimos e seguimos para leste. Chegamos perto de uma grande descida, montamos acampamento e dormimos.

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No terceiro dia, fizemos nosso último almoço e tentamos descer o penhasco, que era um pouco íngreme demais. Atravessamos um trecho, que exigia um salto por cima de um buraco e aterrissagem em um tronco caído. E, novamente, a lei de Murphy se provou verdadeira: na minha vez, o tronco sucumbiu e eu caí por aproximadamente quatro metros, junto com pedras, outros troncos e raízes. Bati a cabeça, mas não me feri gravemente, apesar do leve sangramento. Decidimos então voltar a subir antes que uma tragédia acontecesse.

Perdemos comunicação com a base do parque, porém, consegui sinal no celular para falar com a minha mãe. A mensagem era de que estávamos bem, que não havia ninguém ferido (exceto eu, que tinha acabado de cair, mas ela não precisava saber disso) e que precisávamos da ajuda dos bombeiros para encontrar a saída. Terminamos de subir o desfiladeiro e acampamos.

Havia um grupo de pessoas por terra tentando nos achar. Portanto, passamos o resto do dia parados, gritando para que pudéssemos ser localizados. Apesar da situação, estávamos relativamente tranquilos, nos divertindo e cantando. De noite, fizemos um chá com limão e cebolas, rachamos uma bolacha de água e sal e comemos palmito, proveniente de uma palmeira que ficava ali.

Logo no início do quarto dia, o helicóptero Águia da Polícia Militar decolou e conseguimos ouvi-lo. Então, ao maior estilo “à prova de tudo” penduramos nas copas das árvores todos os itens coloridos que tínhamos: toldos, redes e roupas, para que eles nos vissem.

Percebo hoje, que corremos sérios riscos de não sair de lá, pois costumo dormir de cueca e camiseta no saco de dormir e, por coincidência, minha camiseta era laranja. Imagino que um gordinho de cueca girando uma camiseta laranja fez o bombeiro pensar duas vezes antes de dizer aos outros bombeiros que tinha nos visto de verdade.

Quando eles chegaram, descarregaram uma rodada com os melhores pães com queijo e mortadela do mundo. E bananinhas. Santas bananinhas. O plano inicial era nos levar, um-a-um, no cesto do helicóptero, mas por conta das condições meteorológicas, não foi possível.

Então, os bombeiros desceram do helicóptero e voltamos a andar por aproximadamente dez horas, sem parar. Neste ponto, começamos a sentir o peso do cansaço, diante do fim do desafio, que estava cada vez mais perto.

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Da esquerda para a direita: Erivelton, Patrick (cima), Steffan (baixo), Reginaldo, Aruan (cima), Aquiles (baixo), Rogério, Mathias (baixo), Anthony (blusa da adidas, não estava na serra, irmão do Patrick), Renan, Eu e Jeff.

Fomos recebidos ao final da trilha com um banquete, repórteres e nossas famílias. Fomos notícia em jornais. Algumas semanas passaram até que nos recuperássemos completamente.

Hoje, tomo esta jornada como o divisor de águas da minha vida. Pude conhecer meus limites, testar minhas habilidades físicas e mentais e ter certeza de que aqueles que estavam comigo são as pessoas em quem posso confiar para o resto da minha vida.

Passados alguns dias do aniversário de quatro anos desta aventura, ficam aqui meus pedidos de desculpas pelo esforço movido por todas as pessoas para que nos tirassem de lá.

A gratidão, por todas as lições ensinadas pelos meus Chefes Mathias e Jeff, pelo companheirismo dos meus irmãos escoteiros Aquiles, Reginaldo, Renan, Rogério, Patrick, Steffan, Aruan e Zé e pela nova amizade do Erivelton, guia do Parque Estadual da Serra do Mar, Núcleo Curucutu.

Nota do autor: Não foi possível tirar muitas fotos, pois nem todos levaram celulares e os que levaram decidiram poupar baterias, em caso de emergência.

Ricardo Sanches

Consultor, empresário e estudante de Sistemas de Informação. Escoteiro metido a artista nas horas vagas.