Nós, aqui no Brasil, aprendemos a chamar de descobrimento. Peru, México e outros países preferem falar “conquista”. As razões para essa diferença são muitas, mas a Niède Guidón, um dos maiores nomes da ciência brasileira e responsável máxima pelas pesquisas arqueológicas na Serra da Capivara, resume bem a questão:
“O que acontece é que o brasileiro não respeita os povos indígenas. Muitas pessoas me disseram: por que a senhora fica estudando esses bichos que andavam pelados por aí? “Bichos”. Para essas pessoas, eles (os primeiros habitantes do Brasil) não eram seres humanos, não são uma cultura. É isso que precisaríamos mudar, mas não sei como.”
A Niède me disse isso no ano passado, numa entrevista no escritório da casa dela, no interior do Piauí. Aquela foi a primeira parada do projeto Origens BR, idealizado pelo 360meridianos e que tem como objetivo justamente recontar as histórias dos muitos povos que habitam, há milênios, o que há apenas 520 anos veio a ser chamado de Brasil. Vários desses povos desapareceram do mapa bem antes da chegada dos conquistadores; outros sumiram depois de séculos de colonização.
O Origens BR é uma gigantesca expedição jornalística: em um ano, eu e o fotógrafo Fellipe Abreu visitaremos quase uma centena de sítios arqueológicos em sete estados — Minas Gerais, Piauí, Pernambuco, Paraíba, Pará, Amapá e Acre. E outros lugares ainda podem entrar no roteiro, seja no Mato Grosso, no Rio Grande do Norte ou em Santa Catarina.
Meses após a primeira viagem e me preparando para a próxima, não canso de me impressionar com a riqueza do passado.
Uma terra habitada há milênios – e por milhões
Toda vez que o assunto ‘descobrimento’ ou ‘conquista’ surge, aparece também o argumento de que os povos que viviam no atual território brasileiro antes da chegada dos portugueses seriam, digamos, primitivos, inferiores, em algum padrão torto de comparação, às grandes civilizações que existiram em outros países latinos, como os Incas, os Maias e os Astecas.
Este argumento é de tamanha ignorância, que nem errado consegue ser. Não há no Brasil grandes ruínas de pedra nos moldes de Machu Picchu, Chichén Itzá ou Teotihuacán, mas essa terra é habitada há milênios – e por milhões.
Maurício Heriarte, europeu que passou pelo atual estado do Pará, em 1662, escreveu que apenas um dos povos da região, o Tapajó, era capaz de reunir “60 mil arcos quando manda dar guerra”. Já Bento da Costa, que navegou pelo Rio Amazonas na mesma época, destacou a quantidade de moradores de outra forma: “se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo”.
Segundo a historiadora Maria Yedda Leite Linhares, a Amazônia “foi a área de maior concentração populacional da América no período imediatamente anterior ao contato com os conquistadores”.
E o arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger, que há anos vive e realiza estudos no Xingu, calcula que a população amazônica antes da conquista tinha entre 4 e 10 milhões de pessoas. Hoje, a região tem cerca de 26 milhões de habitantes.
Segundo um levantamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), feito em 2008, o Brasil tem 14 mil sítios arqueológicos. Eles vão de ruínas de sociedades densamente povoadas — como os marajoaras — a resquícios da passagem do homem pré-histórico — como os encontrados na Serra da Capivara, no Piauí
Serra da Capivara
Por falar nela, a Serra da Capivara foi a primeira parada do projeto Origens BR – estivemos lá no ano passado. Essa parte do Piauí guarda a maior quantidade de sítios arqueológicos das Américas e um Patrimônio da Humanidade segundo a UNESCO.
São incontáveis pinturas rupestres e um Parque Nacional com uma estrutura invejável, mas que recebe apenas 25 mil turistas por ano. Apenas como comparação, o Parque Nacional de Jericoacoara, no Ceará, recebe um milhão de visitantes anualmente.
A Serra da Capivara é estudada há décadas por arqueólogos, entre eles a Niède Guidon, que produziu uma nova teoria de ocupação das Américas. Segundo ela, o ser humano está no continente há muito mais tempo do que se pensava antes – e veio por outro caminho. A Serra da Capivara e a Niède Guidón ganharam uma reportagem especial lá no 360meridianos, além de um vídeo no YouTube.
Luzia e os Povos de Lagoa Santa
A tumba mais antiga do Brasil é um buraco no meio de uma cavidade avermelhada, um paredão de terra a menos de dois quilômetros do Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins. É a Lapa Vermelha 4, onde eu estive no segundo semestre do ano passado. Por todos os lados, cinzas de fogueiras feitas pelo ser humano há milhares de anos ajudavam a compor o visual.
Esse é um local único para a arqueologia brasileira: ali, nos anos 1970, foram encontrados os restos de Luzia, uma mulher que viveu e morreu naquela região há 13 mil anos. Luzia e o pesquisador Walter Neves, com sua teoria de ocupação das Américas, se transformaram em ícones da pré-história brasileira. Os ossos de Luzia infelizmente estavam no Museu Nacional, que pegou fogo em 2018 – quase nada restou.
Perto dali estão outros sítios arqueológicos importantes, como o Parque Estadual de Cerca Grande, o Monumento Natural de Vargem da Pedra, o Parque Estadual do Sumidouro e a Lapa do Santo.
A última é um sítio arqueológico que ainda tem muito a revelar: nós acompanhamos quando uma equipe da USP escavou um sepultamento duplo, de pelo menos oito mil anos. As fotos que o Fellipe tirou dão uma ideia do que vimos lá.
Muitos desses lugares são abertos apenas para pesquisadores, como a Lapa Vermelha e a Lapa do Santo. Outros podem ser visitados, como o Parque Estadual do Sumidouro. Mas o que chama a atenção em Minas Gerais é a falta de um grande museu para receber o material arqueológico encontrado ao longo de décadas.
“Não é possível estudar os primeiros americanos sem passar por Lagoa Santa (MG)”, me explicou Walter Neves. E ele completou: “Seria fundamental que houvesse na região um grande museu sobre o Povo de Luzia. Mas infelizmente os políticos locais estão muito aquém do patrimônio que esses municípios geraram. E que ainda têm, pois muita coisa pode ser escavada”.
Você confere a reportagem sobre Luzia e os Povos de Lagoa Santa neste texto. E tem também um vídeo no YouTube.
O Acre e seus mais de 800 geoglifos
Olhando de perto parecia só uma vala. Mas a arqueóloga Antonia Barbosa, do IPHAN do Acre, deixou claro: estávamos num gigantesco sítio arqueológico, um local com pelo menos dois mil anos.
Geoglifos são figuras feitas pelo ser humano no solo, em geral em regiões planas. Os mais famosos são os de Nasca, no Peru, mas a Amazônia brasileira também está cheia desses lugares.
Só no Acre já foram registrados cerca de 800 – a maior concentração desse tipo de estrutura no Brasil. Mato Grosso, Rondônia e Amazonas somam juntos outra centena, enquanto a Bolívia, em especial na fronteira com o Brasil, já catalogou pelo menos 40 deles.
Durante quatro dias, visitamos 20 geoglifos nos arredores de Rio Branco. São figuras geométricas enormes, como círculos e quadrados. Descobertos na década de 1970, com o avanço do desmatamento, essas construções mudaram o que muitos pesquisadores acreditavam sobre a Amazônia: eles são a prova que a floresta tropical é densamente povoada há milênios.
Quer conhecer os geoglifos? Dá para vê-los do alto, num voo de balão ou táxi aéreo. Tá aí (mais) um motivo para ir ao Acre. Você pode ler a reportagem sobre os geoglifos do Acre aqui. Também já tem vídeo em nosso canal no YouTube.
A Pedra do Ingá, na Paraíba
400 figuras riscadas na rocha há pelo menos cinco mil anos. Essa é a Pedra do Ingá, um sítio arqueológico que fica a apenas 100 km de João Pessoa e a menos de 40 km de Campina Grande, na Paraíba. E pra muita gente um grande mistério: quem fez essas inscrições? Como? E, mais importante, por quê?
Não faltam explicações possíveis, das míticas (foram os fenícios, os portugueses, a pedra guarda um tesouro, etc) às sobrenaturais (alô, extraterrestres). Mas o pesquisador Juvandi Souza, da Universidade Estadual da Paraíba, mostrou que as respostas científicas já existem.
E não é preciso apelar para lendas e nem procurar o fim do mistério em outros planetas: foram seres humanos que fizeram aquelas marcas, gente que há cinco mil anos já habitava o que hoje chamamos de Brasil.
Quer saber mais? A reportagem sobre a Pedra do Ingá já saiu. O vídeo ainda está em edição e já já aparece lá em nosso canal.
Origens BR: os próximos passos
Em fevereiro visitamos o segundo maior parque arqueológico do Brasil, um lugar que pouca gente conhece: O Vale do Catimbau, um Parque Nacional que fica em Pernambuco, a quatro horas de Recife.
Além de pinturas rupestres e sítios arqueológicos, o lugar é incrível, ótimo para quem gosta de natureza, trilhas e cheio de paisagens lindas da caatinga, o único bioma 100% brasileiro. O conteúdo já já aparece lá no 360meridianos.
E nos próximos meses vem a parte mais interessante: visitaremos Monte Alegre, Belém e Ilha do Marajó, no Pará, e também dois sítios no Amapá.
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