Ao lado de política e de religião, música é um dos novos assuntos que não se pode mais ser levantado à mesa. Sob pena de levar uma garrafada.
Abril de 2011. O U2 se preparava para tocar no estádio do Morumbi, em São Paulo. Alguns amigos meus estavam se organizando para ir ao show em caravana. Eu não gosto de U2. Obviamente, não iria ao show.
O show ia se aproximando e a conversa da galera cada vez mais monotemática. Então, resolvi trollar um pouco a tietagem: disse que o U2 botava tanto reverb na voz e nos instrumentos que dava para ouvir duas ou três vezes o show inteiro. Mesmo o show sendo ruim, a excelente relação custo-benefício da parada compensava.
Imediatamente, fui metralhado por xingamentos bem pesados e críticas aos meus próprios gostos musicais – como se atacar o gosto alheio pudesse mudar o julgamento alheio sobre os próprios gostos – além de ser acusado de estar com inveja de quem ia a um show que eu não tinha a menor vontade de ir.
O mais engraçado é que a piada faz sentido: parte da sonoridade da banda vem do uso do reverb. Tire isso e você tem o som de outra banda, e não do U2.
Pasmem: ninguém sabia o que era reverb.
Imaginem o que teria acontecido comigo se eu tivesse zoado os Beatles?
Link YouTube | Sunday Bloody Sunday. Toda regra tem sua exceção.
Tenho uma inveja enorme das pessoas que são grandes fãs de cinema, literatura e seriados de televisão. Essa galera consegue conversar de forma civilizada sobre os assuntos de seu interesse.
Já sobre música está cada vez mais difícil ter um diálogo bacana. Sabe aquela conversa maneira, na qual você ri pra caralho e zoa a porra toda enquanto transforma um papo bobo e uma simples troca de informações numa lição pra vida? Pois é. Não existe mais.
De uns tempos pra cá, ficou muito chato falar de gostos. O tema virou um assunto delicado. É quase um crime o direito de gostar (ou de não gostar) de algo sem motivo aparente e nem dar satisfação. Enunciar opiniões virou um exercício de diplomacia, e uma única palavrinha dita ou escrita nesse sentido evoca reações acaloradas, olhares tortos, choro e ranger de dentes. Ofender a mãe ou a religião do interlocutor não teria uma reação tão dramática.
Basta dizer “(não) gosto de [insira aqui um estilo musical à sua escolha]”, na maior inocência e sem pensar muito, e pronto: está feita a merda. É quase uma ditadura da identificação: você pode se identificar e curtir o som que você quiser, desde que seja o som certo.
Link YouTube | Beatallica: unindo fãs de Beatles e Metallica contra um suposto inimigo comum desde 2001.
Chegamos ao ponto de questionar e debater acaloradamente se determinados estilos de música realmente merecem ser chamados de música. Como se esta pauta fosse um assunto de fundamental importância para o bom andamento da humanidade.
Enquanto fazemos piadas com assuntos sérios, tratamos com seriedade excessiva um assunto que deveria ser leve. É mais fácil sentar à mesa do bar e dissertar sobre taras bizarras do que sobre música.
A ignorância sobre um tema torna-o intocável. Era o que acontecia com o sexo em outras épocas, e é o que acontece hoje com a música.
A gente ouve cada vez mais e mais músicas em nosso iPods de vários gigas, cada vez mais imersos em nossas bolhas musicais e desligados do mundo exterior, só que não entendemos o que escutamos.
Link YouTube | Não alimente os hipsters.
O problema talvez seja a ausência de um ensino regular de música nas escolas, como apontam os professores de música, cujo resultado é maior ignorância geral sobre o assunto.
Ou quem sabe a crise no mercado fonográfico, visto que as gravadoras não investem mais em inovações, e tentam garantir seu quinhão explorando comercialmente os campeões de vendas de outras épocas, contribuindo para a estagnação da cultura musical.
Também pode ser o momento atual. Temos uma enxurrada de bandas meia-boca que soam todas iguais, e poucos talentos épicos que insistem em ficar cada vez mais raros. Caras como Freddy Mercury e Jimi Hendrix morreram sem ter a quem passar o bastão. Basta ver a quantidade de festivais de música onde uma legião de bandas anônimas se apresenta, mas quem garante a lotação do evento são dois ou três artistas maiores.
Link YouTube | Exemplo de papo sobre música, videogames, trilhas sonoras e narrativas. O diálogo acontece na caixa de comentários. Parece um certo portal de conversa de machos, não parece?
Pode ser tudo isso em particular, e nada disso no geral.
Também pode ser que, finalmente, viramos uma sociedade politicamente correta, de indivíduos pequenos e chatos. Gente que leva a sérios os próprios gostos e as próprias identidades. E como o gosto musical é uma parte importante da identidade de cada indivíduo, é facil se irritar e encarar como ataque qualquer divergencia de gosto.
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