Depois de três longos meses, cá estamos de volta, meus amigos, hasteando o bastião da sabedoria nas pilastras da galhofa. Desta vez, para contar uma experiência única e surpreendente que sucedeu-se nos confins da Noruega.

Borá lá!

Muitos aqui já sabem que sou estilista de formação e tenho há seis anos uma pequena marca de camisas. E é também de conhecimento que eu larguei tudo para virar pintor em tempo integral. Minha esposa (e sócia) matou no peito e dirigiu nossa empresa sozinha. Só cabia a mim pintar como se não houvesse amanhã.

Foi o que eu fiz.

Pesquisando sobre Rembrandt numa época, encontrei algumas outras pinturas sensacionais de um cara chamado Odd Nerdrum. Fiquei maravilhado e lamentando não viver na mesma época destes grandes mestres, até que descobri que o tal Nerdrum não só estava vivo, como ainda abria seu lar, de graça, na Noruega, para aceitar alguns estudantes que ele selecionava de várias partes do mundo!

Tudo que eu tinha que fazer era mandar uma carta com fotos de três trabalhos explicando qual era meu objetivo com a pintura.

Pinta pouco o Nerdrum

Seguindo a pesquisa, descobri que ele era um dos maiores artistas do mundo e o maior pintor clássico vivo, com obras espalhadas em alguns dos melhores museus do planeta! Mandei a carta acompanhada das fotos e esperei, meio que como quem não espera quando sabe que o pedido é alto demais.

A Surpresa

Um mês depois, quatro da manhã, recebo um email desconhecido:

“Olá Bruno,  recebi sua carta, você poderia me falar um pouco mais sobre você? 

Turid.”

Turid é a esposa do Nerdrum e a responsável pelas admissões. Não sou mais um garoto, com 30 anos, comemorei de maneira moderada.

Seis da manhã, finalizo a mensagem, ligo e acordo o Paulão, meu amigo tradutor (meu inglês é macarrônico) e, antes do almoço, com o auxílio da brodagem, o e-mail foi enviado. Seguem as cinco mais longas horas da minha vida até a caixa de entrada apitar:

“Ok, Bruno. Pode vir em janeiro, até logo.”

Eita pessoal objetivo, gente. Ô loco! Mãos suando. Beijo a mulher. Farofo na janela. Ligo pro pai, pra mãe, pra irmã, pra Xuxa. Janto, quase gorfo. Ligo pro pai, pra mãe, pra irmã. Lavo louça. Beijo a mulher. Deito. Levanto. Madrugo lendo X-men.

Eu tava indo pra Noruega.

Chegando na nova morada

Depois de mais de 18 horas de viagem entre avião/trem/carro, chego a uma pequena cidade com cinco mil habitantes, Stavern, estamos no sul da Noruega, a parte “quente” do país. Saio do trem e vejo a noite mais branca. Há neve por todo canto, minha primeira. Eu ia me emocionar, mas um espirro não deixou.

Um dos estudantes foi me buscar de carro, o Adam. Ele é um americano com trinta anos também, cabelo comprido e barba bem aparada, uma cara de vampiro old school (tipo Entrevista com o Vampiro). Quase sem trocar uma palavra entramos no carro, ele liga o rádio e ouvimos uma música pop estranha que parece saída de um videogame dos anos noventa eu começo a me dar conta que nada ali seria ordinário. Saímos da cidade rumo a uma estradinha e logo estamos no chão batido. Seria o breu total se não fossem as luzes do farol. No meio do nada, paramos. Portões de metal se abrem lentamente para um alvo descampado e duas grandes casas vermelhas aparecem no horizonte. Saímos e só esqueço do frio cortante porque um barulho súbito de ondas do mar, vindo sei lá de onde, me toma de assalto. Pego as malas e entramos no primeiro casarão.

Na porta, de supetão, recebo um “olá” caloroso de uma russa, Ksenia, 22 anos, formada com louvor em Oxford e ostentando cabelos negros e olhos ligeiros. Ela me diz que sou muito bem vindo e sorri quando eu digo “Brasil”, então, tão rápida quanto surgiu, desaparece. Adam, o vampiro pop old school, me apresenta um pequeno e confortável quarto e vai embora. Tudo ali era madeira, exceto o aquecedor que ficava na entrada e que depois ganharia meu coração. Coloco minhas coisas no quarto e não me seguro. “Onde está o Nerdrum?”.

“Lá em cima, pintando”. responde o vampiro. Eu estava nervoso e empolgado. Adam me diz que a mesma coisa aconteceu com ele e que era melhor fazer como band-aid, ir logo e arrancar de uma vez. Conselho tomado, subo os degraus de madeira que, um a um, me cumprimentam. Sinto o cheiro do óleo de linhaça e adentro um grande salão iluminado e lá no fundo tem um homem grande, largo, com cabelos ondulados entre o branco e o amarelo.

“Seja muito bem vindo, Bruno.”

Puta merda, o cara sabe meu nome. Afogo a mão dele com meu cumprimento e sento-me mudo há duas cadeiras de distância. Assisto uma breve conversa e o vejo fazer piada sobre pintar cabeças. Os dois riem e percebendo minha estranheza. Ele pergunta:

— O que foi?

— Nada, desculpe. Não imaginei você assim.

Sinto minhas bochechas super aquecendo.

— Assim como? Rindo?

— É. Rindo.

— Eu tinha que ter uma cara séria, né. Sisuda e importante.

— Foi o que imaginei.      

— Desculpe decepcioná-lo.

E seguimos uma conversa  estranha e divertida sobre péssimas pinturas de cabeças. Sem notar, recebia ali a primeira lição e ela não tinha nada a ver com pintura: O status profissional adquirido por meio da qualidade técnica não migra automaticamente para outras esferas.

Socialmente, Nerdrum fazia questão de ser tratado da mesma maneira com que tratava os outros. Ser um gênio na pintura não o tornava menos humano ou acessível, pelo contrário, parecia que ele era mais fascinado em bater papo do que qualquer um de nós. Já eram quase onze da noite quando ele se despediu e foi para a casa à nossa frente. Com a cabeça a mil, eu tinha me esquecido o quão cansado e esfomeado estava, até que senti um cheiro suculento de guisado que me levou direto pra cozinha. Na ponta de uma mesa de madeira grande e antiga eu vejo a Rachel, uma garota ruiva. Ela me dá as melhores boas vindas possíveis: “Já jantou?”.  

Comemos enquanto falamos sobre a neve. Feliz e pesado, me despeço e vou para o quarto. Mais tarde descobriria que a ruiva, além de cozinheira de mão cheia, era também uma das alunas de maior destaque da Florence Academy (uma das melhores academias de pintura do mundo).

Pronto. Lá estava eu, deitado num quarto em Hogwarts. E antes de conseguir pensar algo mais profundo e poético, capotei.

Dia a dia com o Mestre

Acordo. Com os olhos secos por causa do aquecedor, me arrasto até a cozinha cheia e faço uma hemodiálise com café. Todos já estão bem despertos quando Turid diz um altivo “bom dia”. A esposa do Odd Nerdrum era uma mulher grande e bela, de feição era polida e bem séria. Perguntou-me se eu já estava acomodado e, após minha afirmativa, se retirou sem mais sorrisos. Entendi. Eles eram vikings da vida real.

Era quase nove da manhã quando ouvi um estrondo. “Deve ser o Odd ou um dos filhos dele” – disse o vampiro com tranquilidade.

“Olá! Sou Ode, o filho do mestre!”. Todos riram e eu estendo a mãos sem entender muito bem o tom da piada. Ele não aparentava ter mais que vinte anos, bem alto e de bochechas rosadas. Assobiava enquanto nos roubava um pouco de café. Outro estrondo (os vikings adoram duelar com as portas) e agora era o Nerdrum. Nada de bom dia na cozinha. Seus passos foram ouvidos subindo as escadas rumo ao grande estúdio no segundo andar. E lá notei o segundo ingrediente de uma Lenda Viva. Com mais de setenta anos, aquele homenzarrão que já tinha a vida ganha e que trabalhou até dez da noite no dia anterior, era o primeiro a começar a pintar na manhã seguinte.

Vi que grande parte do seu talento tinha um nome bem peculiar: disposição.

A Rotina

O casarão maior onde eu dormia era o lar dos aprendizes. Nele ficavam nossos quartos, uma cozinha gigante e os dois grandes estúdios onde passávamos a maior parte do dia. Muitos ex-pupilos apareciam para uma breve estada de tempos em tempos. Às nove, todos já estavam de pé, o que fazia a mesa do café parecer o conselho da ONU. América, Russia, Irã, Noruega, Grécia, Brasil e toda a sorte de países dependendo da época.

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Dez da matina e cada um em seu cavalete já pintando o que lhe interessava mais. Não existia cartilha, sugestão ou tema proposto. Aliás, até os estilos eram bem diferentes. A única coisa que realmente tínhamos todos em comum era a seriedade e paixão pelo ofício. O Nerdrum não dava diretrizes ou temas, muito menos “professorava”. Esperava de todos o melhor que pudessem entregar e, ao invés de supervisionar, nos dava confiança e autonomia, duas características inerentes a qualquer empreitada bem sucedida.

Ao contrário do que imaginei, as discussões sobre temas sérios eram sempre divertidas e constantes, filosofia e política não saiam da pauta. A pintura praticamente só entrava se estivesse linkada com um destes temas. Interessante notar como arte é consequência, não causa.

As semanas foram passando e todos ficavam mais próximos, o que tornava as conversas ainda mais efervescentes e as trocas de informação sem nenhum pudor. Quando surgia alguma dúvida mais técnica, não hesitava e recorria ao velho mestre, que sem cerimônia alguma “entregava” todo o seu segredo. Era surpreendente perceber como todo o conhecimento era compartilhado, mas era preciso fazer o questionamento certo e isto diz muita coisa.

Comecei a entender que o mais difícil não era obter as respostas, mas sim fazer as perguntas certas.

Não bastasse ter visto ao vivo telas que me emocionaram, poder compartilhar o cotidiano com Odd Nerdrum foi único. Foi a primeira pessoa na minha vida que eu não consegui antecipar nenhuma atitude ou pensamento. Quando eu achava que fosse provocar, ele respondia carinhoso. Quando eu aguardava uma risada, via olhos marejados e até quando eu esperava que ele fosse me surpreender com uma resposta inusitada ele me dizia algo que eu já tinha concordado antes. Era incrível conversar com alguém sem poder fazer qualquer tipo de prejulgamento porque não era possível trapacear. Eu não poderia prever qual das respostas que eu daria me colocaria numa situação melhor, ou seja, só me restava ser totalmente verdadeiro. Quando isso acontece, você começa a perceber que suas perguntas serão mais sinceras e as respostas mais esclarecedoras se você estiver realmente interessado no conteúdo da discussão, não na posição social que a pergunta te coloca naquela conversa.

E não parava por aí. Em um quadro de três metros, Nerdrum poderia pintar um rosto lindíssimo, até então a melhor parte do quadro. Mas se aquele rosto não conversasse de maneira correta com os outros elementos, ele desaparecia, era lixado por completo da tela para dar lugar a outra face, noutro ângulo. E se ficávamos estarrecidos toda vez que isso ocorria (e como ocorria!). Nossa surpresa era ainda maior quando víamos emergir algo ainda mais belo, que tornava tudo potencialmente mais harmonioso. Ele chamava esta parte do processo de “kill your darlings” e, pensando mais um pouco, notei que isto tinha tudo a ver com uma famosa frase de Einstein:

“É preciso estar disposto a desistir de quem você é, afim de ser tornar aquilo que você vai ser.”

Era a teoria aplicada a vida real e, o mais fantástico, funcionava!

Meu primeiro quadro terminado por lá

Epílogo

Após dois meses sem deixar de pintar um único dia, eu, Adam e Ksenia resolvemos conhecer Oslo. O museu de lá era fantástico e cruzar nossas percepções sobre cada obra era um misto de surpresa e completude. Parecia que só era possível entender realmente uma obra-prima quando eu ouvia um ponto de vista divergente do meu. Entender e apreciar o que eu já gostava era fácil, agora, quando eu via a beleza nos caroços, aí a coisa toda se tornava sublime.

No museu, Munch nos dava outra aula

Para terminar nosso passeio fomos ao Parque Vigeland eu poderia divagar sobre esta parte, mas só vou deixar aqui meus parabéns ao prefeito que teve a caruda de bancar um escultor tão doidão e fascinante quanto o Vigeland.

O que diria a família tradicional brasileira?
E a Igreja?
Este tipo de arte incentiva o povo a ser pior e desmoraliza o país
É. Vendo isso eu tenho certeza que a Noruega é um lugar desmoralizado que não deu certo

Era Hora de Ir

Foram, ao todo, três meses de estadia (fev/mar/abr/2016), pintando todos os dias, com exceção do dia em Oslo. Dois quadros foram finalizados e outros dois começados, muito atum em lata foi devorado e um caminhão de experiência sem fim foi obtido (e ainda está sendo assimilado).

Turid me surpreendeu propondo que fizéssemos um pequeno jantar de despedida. Aquela viking durona de humor peculiar tinha se tornado uma pessoa muito querida por mim e, depois do peixe que ela fez naquele dia, posso assegurar que a recíproca era verdadeira. Adam, o vampiro pop old school dj (cada vez que o cito, vai aumentando a gama de talentos dele), tinha partido uma semana antes, levando consigo 4 incríveis pinturas soltas e luminosas. Rachel, a ruiva da Florence, estava cada vez mais feliz consigo mesma. Tinha pintado uma flor que era mais viva que a original e, nas horas vagas, construía um jardim de pedras (!!!) fabuloso na entrada da casa. Ksenia, a russa de Londres, só aparentava ser tão jovem (22) quando sua disposição para pintar por horas a fio vencia a todos noite a dentro. Estava criando um autorretrato sincero e cru, como um grande Daumier.

Em apenas três meses era nítido como havíamos crescido de maneira exponencial. As conversas sobre Kant era tão naturais quanto as sobre saladas, os conselhos técnicos dados entre si eram mais valiosos do que todos os livros que eu havia lido. Foi somente um trimestre, mas com certeza os dias se passaram na cronologia canina (onde 1 dava 4).

Despedindo-se de um velho mestre

Acordei cedo para pegar o trem e, enquanto arrumava as coisas, ouvi a portada viking habitual e esperei os degraus da escada rangerem na sequência. Mas nada aconteceu. Saí do meu quarto para checar o que havia acontecido e ele estava na cozinha, sentado: “Tem café? Hoje você vai embora, né?”. E não falamos sobre nada profundo, algo sobre camarões gigantes da Islândia. Logo depois, fui para o meu quarto pegar as malas e ele subiu para pintar no estúdio. Já de saída, uma subida rápida para o aperto de mãos. Estendo o braço, ele levanta e me dá um abraço. Surpreso, eu ainda tive tempo de dizer que sentiria saudades. “Eu também. Este é um lugar especial e eu não gosto de despedidas”.

Entro no carro rumo ao meu novo destino, contente em conhecer um ídolo e pretensioso a chamá-lo de amigo. E então me lembro de Spinoza, que dizia que a alegria era o aumento da potência de viver. Se ele estiver certo, não tenho dúvidas, eu sou um v8 envenenado.

 

O retrato que fiz de Adam, o vampiro
O retrato que fiz de Adam, o vampiro

 

Teve até parabéns!

 

Na labuta

 

Este começou bem, mas terminou no lixo. Aprender o desapego

 

E lá vamos nós, de volta!

 

E, meu amigo, eu aposto que quando leu o título: “como é conviver com uma lenda viva”, você já esperava encontrar algo surreal, louco e excêntrico. Pois saiba, como você mesmo viu, as lendas até podem ser chocantes num primeiro encontro, mas o que realmente as difere dos outras pessoas é o dia a dia, a dedicação integral que dão ao seu propósito de vida, sem nunca hesitar, sem nunca recuar, nem ao menos para pegar impulso.

Como sempre, espero que tenha sido útil ou, ao menos, divertido.

Meu muito obrigado Odd, Turid, Bork, Ode, Myndin e Aftur. Muito feliz e orgulhoso em poder dizer que ano que vem nos veremos novamente!

E momento jabá honesto! Agradecimentos também aos meus patrocinadores irmãos aqui no Brasil, que tornaram esta viagem possível, a Sony, com seu Z5 cabuloso que me salvou a pátria na hora das fotos com uma qualidade realmente decente e as roupas da Timberland que me impediram de congelar nos confins do mundo. Vocês são foda! Logo mais todos juntos no próximo texto: A Aventura Gelada.

Obs.: Este texto foi traduzido para o inglês (por Paulo Cecconi) e publicado aqui no PapodeHomem. Se você conhece algum amigo gringo que se interessaria por esse relato, seja pela pintura, seja pelo conhecimento adquirido com alguém muito admirado, é só enviar este link pra ele

Bruno Passos

Pintor. Ama livros, filmes, sol e bacon. Planeja virar um grande artista assim que tiver um quintal. Dá para fuçar no <a>Instagram</a> dele para mais informações."