A vida é recheada de absurdos. Se prestarmos atenção, a todo instante coisas que aparentemente não fazem sentido acontecem. E são tão presentes que, de vez em quando, falamos para nós mesmos: “não acredito que isso está acontecendo”.

Dentro de um cenário que busca ordem e  sentido em tudo, os absurdos, ao conquistarem frequência, vão se misturando à realidade e não mais são vistos como acontecimentos extraordinários, mas sim como corriqueiros. Longe de mim, nesse momento, fazer qualquer julgamento de valor quanto a bandeiras partidárias, mas, no contexto brasileiro, podemos visualizar com bastante clareza situações consideradas absurdas, principalmente no campo econômico e político.

Embora esse não seja o tema principal do texto, sinto-me obrigado a recomendar, para demonstrar meu apego à crítica ideólogo-histórica de nosso país, a leitura de Os Bruzundangas, livro de Lima Barreto que é um excelente retrato do universo fantástico do absurdo brasileiro.

Mas não precisamos nos ater a figuras tão gerais como as decisões dos representantes do poder democrático e do princípio positivista comtiano da “Ordem e Progresso”. Por vezes, vemos vizinhos, parentes, amigos e desconhecidos terem atitudes que revoltam os critérios morais e éticos da universalidade e que nos fazem repetir a frase que falei no primeiro parágrafo.

Mas retomando o pensamento do conformismo do absurdo, faço uma pergunta: como seria se a falta de sentido se entranhasse tanto na sociedade a ponto de se tornar institucional?

Franz Kafka* responde. E eu começo, finalmente a falar do livro de hoje.

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Em grande parte de sua obra, o mestre da literatura non sense expressou essas, e muitas outras reflexões que tento aqui incitar em vossos inquietos corações. Ele contou histórias que, à primeira vista, parecem ser fantásticas e inverossímeis, mas que, a posteriori, são paulatinamente aceitas como comuns em qualquer lugar.

Eu poderia discorrer um longo texto falando apenas sobre essa especialidade do escritor tcheco**, mas como meu propósito aqui é seduzir vossos desejos para a leitura de um livro, escolhi falar hoje sobre O processo.

“Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal.”

– trecho inicial de O processo.

Tudo começa com Josef K., um humilde trabalhador do setor financeiro, sendo informado de um processo no qual a sua pessoa figura como ré. Entretanto, ao questionar qual a origem da acusação, nada lhe é informado. Ele simplesmente precisa se preparar para cumprir as etapas processuais, pois, do contrário, sua imaterial situação pode ficar ainda pior.

Sem um esclarecimento sobre o ocorrido, Josef K. tenta resgatar na memória dos dias passados, alguma transgressão de regras ou crime cometido. Apesar do esforço, não consegue encontrar. Ou seja, ele poderia estar sendo acusado de qualquer crime existente na imensa lista de normas dogmáticas que compunha o sistema jurídico de sua terra, mas não estava nem perto de descobrir qual o motivo.

E nem pense em se revoltar…

A justiça é perfeita e serve justamente para separar os certos dos errados, então, se for inocente, não deve se preocupar. Tudo se resolverá no final. Mas o que fazer quando ninguém, nem mesmo os supostos responsáveis pelo sistema sabem qual o motivo do processo?

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Sem resposta, é o desespero que move Josef K. de um lado para o outro em busca de uma solução para o seu problema. Vai atrás do tribunal, mas não consegue entender; procura o senhor Huld, um advogado indicado pelo tio, mas o que encontra é uma ineficiência latente. De tanto andar, acaba encontrando Rudi Block, que também é cliente do senhor Huld e, para não correr riscos, contratou mais cinco advogados para acompanhar o seu longo e complicado caso.

Der-Prozess

O que se vê em O processo é a maestria de um autor desesperançado, em uma de suas mais fortes e contundentes obras, referência absoluta para aqueles que desejam entender um pouco mais sobre como funcionam os mecanismos de uma estrutura hercúlea. Estrutura essa que foi criada para assistir um prepotente e arrogante Estado democrático de Direito, cuja mote principal é levar justiça para todos com imparcialidade. Contudo, quando essa pretensão se junta com uma concentração de poder em uma única entidade, o que resta são relações mecânicas de falsa tranquilidade.

Ocorre que, a acusação de Josef K. serviu apenas como estopim para uma reflexão desesperada do personagem que, acima de tudo, já se encontrava absorvido pelas engrenagens burocráticas do Estado, tal como se vê na pertinente profissão escalada para ele por Franz Kafka. Josef K. era funcionário de uma instituição financeira, que resume muitas horas de seu dia – e, consequentemente, boa parte de sua vida  – e define o futuro de inúmeras pessoas a partir de simples aplicações monetárias.

Quando lemos O processo é inevitável fazer a associação com o atual cenário de nosso mundo, apesar de sua história muitas vezes parecer fantástica. Mas, certamente, leitores cuidados como vocês não cairão nessa armadilha.

Kafka é brutal quando extermina qualquer esperança de um mundo melhor na base em que se encontra. Até hoje vemos diversos Josef K’s espalhados pelos presídios, aguardando julgamentos há mais tempo do que a pena máxima pelo seu crime prevê. Eles gritam, mas ninguém os ouve. A resposta está ali, escrita em um pedaço de papel comumente chamado de Código Penal, mas os trâmites são complexos demais, e as vozes suplicantes por um pedacinho de justiça vão ficando roucas, até que já não conseguem extrair mais nenhum som. Por fim, são absorvidos por um sistema que, embora insista em levantar essa bandeira, nunca os representou.

*Franz Kafka (1883-1924) nasceu em Praga, capital da atual República Checa. Conhecido por seu estilo non sense, publicou também A metamorfose, O castelo e outros.

** Sobre esse ponto é importante a interlocução de uma nota. Franz Kafka, apesar de nascido em Praga e, portanto, de nacionalidade tcheca, faz parte do magnífico cânone literário da Alemanha, pois escreveu em língua alemã.

Filipe Larêdo

Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente trabalha na Editora Empíreo, um caminho que decidiu seguir na busca de publicar livros apaixonantes. É formado em Direito e em Produção Editorial.