Os fins justificam os meios.
No cinema, toda obra ganha autenticidade não apenas com sucesso de público e crítica, mas também o quanto a linha da história vai ser generosa com o filme.
Alguns filmes caem no esquecimento. Sempre que escrevo que algum filme vai cair no esquecimento, eu sempre penso no romance Shakespeare Apaixonado, que desbancou obras incríveis como Além da linha vermelha do Malick (claro que você não se lembra, mas o primeiro filme levou o Oscar de melhor filme e o Globo de Ouro, na mesma categoria, tudo isso no ano de 1999).
E quando penso num filme que pode não ter ganho nada, mas a história os coloca justamente no seu lugar de glórias na memória, aí acabo lembrando de vários filmes como muitos do Samuel Fuller (Beijo Amargo) ou de Howard Hawks (Hattari), isso porque nem vou citar Hitchcock ou Chaplin aqui.
O que mais me faz sentir grato aos deuses do cinema é que Oscar é premiação que não busca justiça, pois essa está presente quando a história coroa filmes na posição de clássicos e, por conta disso, nos aguça a curiosidade de conhecer os “tais filmes que o amigo que gosta de cinema fala tanto”.
Foi assim que, no começo da minha vida cinéfila, fui conhecer melhor a obra de Orson Welles, por exemplo, e abraçar outros filmes que são tão ou mais brilhantes que sua obra mais famosa: O Cidadão Kane.
Toda trilogia de O Poderoso Chefão, por exemplo, talvez seja, o primeiro, o filme que mais me chamava a atenção e me fazia querer sentir-se no status de pessoas no mundo:
Os que assistiram o Poderoso chefão / os que não assistiram o poderoso chefão
Até hoje me lembro, quando queria acompanhar meu pai nas “coisas de gente grande” e uma delas era ver filmes do lado dele, filmes que eu sabia que eram importantes só por causa da chamada que os canais de TV faziam quando o filme ia passar. Sendo assim, creio que eu referir aqui toda uma técnica ou um texto analítico para trilogia, estarei chovendo no molhado e creio que tudo que pudesse ser falado sobre toda esta epopéia, já existe. Com isso, transformarei meu texto na saga de um garoto que queria se sentir dentro daquele grupo seleto de amigos que viram o filme numa noite sentado ao lado do pai e de repente poderia me sentir uma criança privilegiada.
Primeira vez, foi num Supercine. Meu pai havia comprado no mercado alguns amendoins e algo bem relaxante pra beber e ver o filme. Quando apareceu na propaganda a exibição do filme, foi o momento que olhei pro meu pai e disse: Quero ver contigo, pode? – Sábia resposta dele quando me disse que se “eu aguentasse, tudo bem”.
Link YouTube | O logo, a música, e a primeira frase, tudo completamente hipnotizante: “Eu acredito na América”
Lá estava eu vendo o filme, aquela cor difusa e indireta que começava a me dar sono. Um velho acariciava um gato, tinha batatas na boca e um bando de puxa sacos cheio de dedos pra falar com ele. Não entendia nada.
Via que tinham filhos e desde então a única coisa que me fazia despertar pra prestar atenção no filme, era um tal de Sony que era chapa quente, pavio curto e batia pra valer nos folgadões. Bateu no marido da irmã. Foi legal ver ele batendo no carinha no meio do bairro italiano em Nova York.
Sony pra mim era o maior.
Esse aí é o poderoso chefão, Pai?
Não filho, este é o filho dele. O “poderoso chefão” tá no hospital porque tentaram matar ele na frente de uma quitanda
Caralho, como assim o filho dele? Esse era pra ser o poderoso chefão, não o velhinho com batatas na boca que tomou um enquadro numa quitanda. Que vergonha hein?
E foi. Embalei no filme, acordei e masquei alguns amendoins olhando pra tela. Maldita hora que o Sony saiu puto pra brigar com o cunhado de novo. Pensei: legal, agora o Sony mata aquele imbecil que bate em mulher.
Maldito pedágio que jamais vou esquecer. Aliás, acho que só aprendi o termo pedágio na minha infância por conta desta sequência covarde que foi ver o Sony ser varado a balas, muitas balas, transformaram o meu personagem favorito numa verdadeira peneira!
Sacanagem! Mataram o que eu achava que deveria ser o verdadeiro poderoso chefão.
Garanto que, depois de 15 minutos, lá estava eu pescando novamente, caindo com a cabeça no sofá e acordando somente o dia seguinte com toda curiosidade do mundo.
Meu Deus, naquela época não existia vídeo-cassete na minha casa! Tinha de esperar até um ano passar pra anunciar novamente a exibição do filme que me tornaria um “hominho”.
Passou mais que um ano e lá estava anunciada a exibição de O Poderoso Chefão para Sessão de Gala que passava depois do Supercine. Ali sim era uma questão de honra. Marquei com meu pai que me respondeu com a mesma ironia: “se tu aguentar, a gente assiste”. Mas ainda não era a minha vez. Dormi várias vezes e não conseguia prestar atenção, a não ser o assassinato da cantina com um Al Pacino com a boca inchada ou na sequência final em que exterminam a “concorrência”, meu Deus! Como pude perder aquela matança? Aquilo sim era uma grande matança! A big fat kill!
Link YouTube | “Deixe que seus amigos subestimem suas qualidades e que seus inimigos superestimem seus defeitos”. Sábio. Muito sábio.
Pronto. O filme começou a formar num painel de memórias e assim, sentia que estava me tornando homem, afinal, o filme de gente grande já estava sendo absorvido pra minha vida e pra minha formação.
Somente quando comecei a me tornar um cinéfilo, lembro que, no auge do VHS, eu procurei um título triplo que juntava a primeira e segunda parte da trilogia em ordem cronológica chamado “O Poderoso chefão – O Épico”. Foi o máximo. Me prendi numa noite de sábado e devorei os dois filmes feitos em um a base de cerveja e Doritos. Foi a passagem de adolescente pra homem. Comecei a entender muita coisa que não tinha entendido e, de fato, poderia dizer que a missão de ver um clássico de cinema que mostrava nas propagandas de TV estava concluído.
Mas não. Ao comentar numa rodinha de amigos que vi esta versão, virei motivo de chacota pois eu “estava com preguiça de ver a forma como o diretor havia deixado”. Lá se foi toda minha jornada ralo abaixo. Não desisti. Foi quando, com a chega dos DVD´s, muitas locadoras teimosas estavam fechando suas portas e vendendo os clássicos por preço de banana. Peguei meu salário naquela época que eu torrava em CD´s do Social Distortion, New Model Army e Stray Cats, e decidi comprar os três filmes numa tacada só.
Pensei em fazer a jornada num dia apenas. Mas meus mentores de cinema disseram “vai com calma. Veja no tempo suficiente que você possa assimilar o filme”.
Decidi fazer escala até. Assisti toda sexta feira, à noite, pois me lembro que meu colegial tinham janelas no horário e os deuses do cinema foram generosos comigo mais uma vez em permitir que não tivéssemos a última aula da sexta-feira. Foram três sextas sagradas, como uma beata ia pra missa, lá estava eu, nas noites de sexta, vendo a trilogia na minha TV de 29 polegadas de tubo com um som ligado no micro system.
Ali a vida fez sentido: A trilha italiana que Nino Rota fez e que jamais sairia da minha cabeça (e seria endossado pela moda ridícula de buzinas de carro épocas adiante), a fotografia de Gordon Willis que não me causava sono, mas tinha uma referência debruçada até em Caravaggio, atuações de atores renomados como Marlon Brando e toda uma trupe de atores da minha geração de tardes de VHS, com Robert De Niro, Robert Duvall, James Caan (o Sony, o fodão) e até mesmo do meu ídolo de atuação de cinema americano, Al Pacino.
Hoje vejo que o filme é muito mais sobre questões familiares do que um filme de máfia. Do quanto Coppola (Santo Coppola) entregou-se ao projeto e não apenas adaptou uma obra litarária de Mario Puzzo.
A família, para aqueles personagens, era algo mais importante que tudo, a ponto de se perder a compostura e fazer retaliação usando a lei de Talião.
Um homem é reconhecido pelos valores que ele traz do berço. De fato, um homem é reconhecido pelos seus atos respeituosos e a saga mostra o quão difícil é conseguir respeito, nem que seja à base de sangue para que se compreenda o quão longe se pode ir.
Hoje, já com uma formação de cinema, quando se fala em O Poderoso Chefão, me lembro de como o relacionei com o fato de se tornar homem. Me lembro dos amores, arrependimentos e de quantas vezes eu posso olhar por uma porta e me ver refletido no lado de dentro enquanto alguém a fecha e o fade black diz que dali em diante sou eu ou você quem deve continuar com as responsabilidades que quis arcar.
São 40 anos de trilogia de “O Poderoso Chefão” que faz com que todo mundo queira ser mais homem do que já é.
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