Enquanto pintava uma cerca, polia o chão e encerava o carro, Daniel San aprendeu golpes de caratê. E pelo caratê aprendeu a crescer.
O método indireto do Sr. Miyagi não funciona romanticamente assim nas artes marciais, mas talvez possamos experimentar um processo parecido na vida. Se todos os nossos microatos mais cotidianos (como escovar os dentes) expressam o estado de nossa mente, será que podemos estimular uma causalidade inversa, usando ações simples (como lavar um carro) para nos transformar?
Bagunça de sapatos no templo zen
Assim que comecei a cursar filosofia, com 18 anos, encontrei Mente zen, mente de principiante perdido na biblioteca da USP. Pirei e logo liguei para o templo Busshinji perguntando pelo horário dos iniciantes.
Entrei na sala de prática junto com outros novatos, todos nós ansiosos por receber instruções de zazen, com medo de não aguentar os 45 minutos de imobilidade. Antes de qualquer coisa, a professora apontou para a porta, onde tiramos nossos sapatos no piloto automático, e disse: “É assim que deve estar a mente de vocês. É assim que deve estar a vida de vocês”.
Ansiedade ao avançar um vídeo no YouTube
Alguém recomenda uma longa entrevista com David Foster Wallace e você clica para ver qual é. No primeiro de nove vídeos ele começa citando Wittgenstein e você passa alguns milissegundos ponderando entre duas escolhas: 1) realmente parar tudo e ouvir com interesse; 2) clicar na barrinha, pular para 2:30, 4:58, avançar até o fim em busca de algo extraordinário que em poucos segundos capture sua atenção, sirva como entretenimento e o faça divulgar no Facebook como “foda” ou “genial”.
Ora, isso que esperamos encontrar pulando para o meio do vídeo, essa coisa incrível, isso não existe. Vamos morrer frustrados em modo forward.
Se fazemos isso com vários vídeos todo dia, como essa mesma mente está lidando com projetos, relacionamentos, viagens, grandes coisas? Provavelmente com a mesma ansiedade, com a mesma dependência de estímulos, olhando tudo como entretenimento, sem nunca se satisfazer, sempre querendo checar se vale a pena ou se tem coisa melhor na outra aba, sem conseguir parar e viver com interesse.
Link YouTube | Todas as lições do Mr. Miyagi. Você consegue assistir ao vídeo mais incrível do mundo sem clicar na barra de navegação?
Desânimo ao escovar os dentes
Quando minha vida começa a ficar zoneada ou o sentido das coisas se embaça, a primeira coisa que muda é o modo como escovo os dentes. Eu estou longe de me deprimir ou surtar, mas já começo a colocar a pasta de modo mais displicente e esfrego a escova sem tanto vigor, sem me dedicar nos ângulos mais profissionais, como se eu não confiasse mais no propósito da limpeza. Os dentes parecem mais amarelos, irreversivelmente sujos.
Ali, no micromundo do espelho do banheiro, acontece o que em breve acontecerá com todos os âmbitos da minha realidade. Ali eu posso observar minha mente começando a se perder, meu corpo começando a entortar. E ali mesmo eu posso redirecionar tudo com a escova. Aumento o vigor, corto a ilusão, sorrio. Se tivesse deixado a confusão crescer para além da boca, seria bem mais difícil encontrar algum objeto xamânico para retomar a sobriedade.
Indisponibilidade com a caixa de almofadas
Ano passado Fábio Rodrigues chegou no QG com uma caixa cheia de almofadas de meditação: “Gitti, dá uma olhada”. Eu abri por cima: “Legal”.
Ele se aproximou nervoso: “Abre direito, porra, assim ó”. Tirou as almofadas, me jogou algumas na mão. “É bem assim que você está vivendo, cara”. Eu concordei. Sempre com pressa, ocupado, tratando qualquer evento como interrupção, como se tudo e todos estivessem me atrapalhando. As coisas e pessoas e situações que surgiam eu não abria, só olhava por cima, sem adentrar, sem pegar na mão.
Até hoje, especialmente no QG, eu vivo meio de lado, passando, como se eu não quisesse parar a qualquer momento, conversar, entrar. Vivo já indo fazer outra coisa. Sofro de indisponibilidade.
O método xamânico do Sr. Miyagi
Alguns microprocessos servem apenas para nos ajudar a detectar travas e aflições, não para trabalhar com elas. Inviável se iluminar escovando os dentes, alinhando sapatos, abrindo malas ou assistindo a vídeos sem pular. Porém, é possível usar uma infinidade de ações banais para desenvolver qualidades corporais e mentais que serão utilizadas em muitos outros contextos.
No budismo zen, por exemplo, em paralelo ao estudo e à prática formal de sentar em silêncio, todos os trabalhos manuais são encarados como extensão do treinamento: cortar alimentos, cozinhar, limpar o banheiro, cortar a grama, cuidar da horta… Mais ainda, qualquer tipo de arte ou técnica é usada como suporte e meio hábil: ikebana, cerimônia do chá (sato), bonsai, arco e flecha (kyudo), haikai, sumi-ê, bushido, kabuki.
Numa fala rasa, podemos arriscar dizer que o princípio ativo é parecido com o método do Sr. Miyagi: cortar cenouras ou atirar uma flecha são jeitos de detectar onde está a nossa mente (estou distraído ou presente, sinto cansaço, orgulho, raiva?) e também mecanismos de cultivar, exercitar, desenvolver outro funcionamento, outros hábitos.
“Todas essas coisas, o arco, a flecha, o alvo e eu estamos enredados de tal maneira que não consigo separá-las. E até o desejo de fazê-lo desapareceu. Porque, quando seguro o arco e disparo, tudo fica tão claro, tão unívoco, tão ridiculamente simples.”
–Eugen Herrigel | A arte cavalheiresca do arqueiro zen
Durante a formação de 3 anos para virar líder de TaKeTiNa, vi meu professor usar diversos instrumentos para trabalhar com as pessoas por meio do ritmo. Berimbau, caxixi, surdo, tschanggo, conga, cantos tribais… Enquanto a gente pensa que está aprendendo a usar a pedra no berimbau, na verdade estamos aprendendo a relaxar corpo e mente no meio do caos. Quando escrevo sobre isso agora, pode soar como uma metáfora ou abstração, mas é exatamente assim que acontece.
Do mesmo modo, em rodas de TaKeTiNa, as pessoas usam os pés, as mãos e a voz para explorar processos sutis que operam de modo mais invisível e pouco concreto durante a vida cotidiana. No trabalho, ficamos estressados sem perceber. Nas relações, ficamos ciumentos, raivosos, ansiosos, sempre culpando elementos externos. Fazendo apenas ritmos crus, sem histórias e conteúdos para atrapalhar, fica mais evidente quando surgem as tensões, quais as estruturas que nos fodem. Além de nos observar, também conseguimos mexer diretamente com cada experiência, testar saídas, descobrir outros jeitos de viver.
Artes marciais, meditação, esportes, método Feldenkrais, escrever para o PapodeHomem, qualquer trabalho ou atividade pode ser usada por alguém com essa habilidade de xamã. Quase todo xamã, aliás, adoece gravemente na infância ou adolescência e é curado por um tipo de mecanismo que depois vai usar para curar outros seres (música, ervas, toques, hipnose, palavras, rituais, qualquer coisa vira macumba).
Você pode fazer um chá e apenas fazer um chá, escrever um texto e apenas escrever um texto, dar uma palestra e apenas dar uma palestra, limpar sua casa e apenas limpar sua casa. Ou pode aproveitar cada ação para se engajar em algum treinamento, para desenvolver qualidades corporais e mentais que serão utilizadas em muitos outros contextos.
Melhor ainda se encontrar algum professor que saiba como usar alguma técnica para treiná-lo em outra coisa. Em vez de aprender a tocar somente guitarra, por exemplo, um bom professor xamazão é capaz de te ajudar a tocar sua vida inteira de outro modo. Ele vai vincular cada processo da guitarra com um desafio específico de proporção muito maior. Vai te encurralar de um modo que será necessário mudar boa parte da sua vida para conseguir fazer aquele solo, ou cortar cenoura sem hesitação, ou bater palmas no ritmo, ou produzir um sumi-ê verdadeiramente esportâneo…
Se bem usada, qualquer coisa pode servir para espelhar sua vida, como um mecanismo orgânico de biofeedback e auto-regulação. Se você relaxa, o som do berimbau sai perfeito. Se você surta, o berimbau grita isso na sua cara e para os outros. É quase como se você começasse a enxergar nitidamente alguns monstros abstratos como medo e impaciência.
O resultado técnico é o de menos. O que importa é quanto o corpo aprendeu e como ele começou a se mover por trás, em paralelo, ao redor daquele aprendizado específico. Se começamos a fazer esse processo com várias coisas, nossa vida inteira pode se transformar em um treinamento incessante. Mas esse é um ponto que precisa de outro texto para ser detalhado. Entraremos nisso em breve.
Estou curioso para saber se vocês têm mais exemplos e relatos do primeiro tipo (momentos corriqueiros que evidenciam grandes dinâmicas da sua vida) e do segundo (processos comuns que nos possibilitam treinar outra coisa). Seguimos o papo nos comentários.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.