Ainda nos meus anos de faculdade, sentado em uma mesa de bar com amigos, pensei: não seria legal fazer uma pesquisa sobre o destilado brasileiro de cana-de-açúcar, a nossa cachaça?Naquela época, o objetivo era fazer um longa sobre a bebida, mas como esses papos de boteco acabam sendo esquecidos, achei que a ideia duraria no máximo até a saideira.
Uma das motivações para pesquisar e documentar a cachaça era justamente conhecer as histórias daquelas inúmeras garrafas nas prateleiras empoeiradas, vindas de todo Brasil e repletas de rótulos hilários, tais como “Amansa Corno”, “Na Bunda”, “Leite da Mulher Amada” e “Balanga Bicha”.
Apesar disso, no Brasil, nada mais comum do que desvalorizar e desconhecer cachaça. O bêbado pode até ter enchido a cara de cerveja, mas vão apontar pra ele e dizer: “Lá vai o cachaceiro”. Pior, as versões ditas “mais chiques” do nosso drinque nacional por excelência, a caipirinha, sempre incluem elementos gringos, como vodca, rum e até mesmo saquê, que nem destilado é.
Um detalhe interessante: a cachaça é das poucas bebidas alcoólicas que não envelhecem apenas em carvalho. Madeiras nacionais como o bálsamo, umburana, jequitibá, ipê, tapinhoã e várias outras são utilizadas para o envelhecimento ou armazenamento da bebida. Cada madeira concede uma cor, um aroma e um sabor característico. O potencial gastronômico dessa particularidade é imenso: imaginem as possibilidades de harmonização da bebida com ingredientes e pratos da cozinha brasileira. Afinal, tem coisa melhor e mais brasileira do que uma boa cachaça acompanhando uma feijoada?
Mas, por falta de informação, o destilado brasileiro ainda é tido como um produto menor, com poucas qualidades sensoriais, uma bebida de “pinguço” e isso nos faz deixá-lo ali, paradinho nas prateleiras, mesmo com tantos causos pra nos contar e com tanto sabor pra no dar. Esses preconceitos não são recentes e fazem parte mesmo da história da bebida.
Os historiadores dizem que a primeira cachaça foi destilada por volta de 1532 em São Vicente, onde surgiram os primeiros engenhos de açúcar no Brasil. Há algumas versões sobre a sua origem, uma delas conta que o destilado teria surgido quando um escravo, que trabalhava no engenho, experimentou a “cagaça” – um caldo esverdeado e escuro que se forma durante a fervura do caldo da cana. O processo de destilação da “cagaça” acabou dando origem à cachaça.
A bebida teve sua fabricação aprimorada ao longo dos anos, atraindo vários consumidores e passando a representar uma importante atividade econômica na colônia. Com isso, a bagaceira e os vinhos importados de Portugal apresentaram uma brava redução de consumo. Preocupados com o sucesso da aguardente brasileira, os portugueses, através de uma Carta Real de 13 de setembro de 1649, proibiram a fabricação e a venda da cachaça em todo o país. Hoje, todo o dia 13 de setembro se comemora o “Dia Nacional da Cachaça” como uma forma de relembrarmos os tempos de um Brasil colonial, quando a cachaça era símbolo de resistência contra a Coroa portuguesa.
Por causa dessa e de outras proibições que acompanharam a trajetória da cachaça, o destilado apresenta diversos sinônimos, que ajudavam os produtores e os comerciantes a burlarem a fiscalização. Com certeza, brasileiro que é brasileiro conhece pelo menos uns cinco apelidos para se pedir uma boa cachacinha. Aqui vão os meus: água-que-passarinho-não-bebe, boa pra tudo, caiana, esquenta-corpo, talagada… O dicionário Houaiss registra mais de quinhentas palavras para denominar a cachaça e aqui tem mais alguns. Eta povo criativo!
O mapa da cachaça
Aquele flerte inicial com a história da bebida acabou se concretizando com o site Mapa da cachaça. Junto com outros colaboradores entusiasmados, montamos um site que busca fazer o que o francês faz com o vinho, o escocês com o uísque, o mexicano com a tequila e o russo com a vodca: valorizar um produto tipicamente nacional!
Recentemente, criamos um cadastro colaborativo de alambiques no Guia Mapa da cachaça. Funciona como um wiki, onde qualquer pessoa pode cadastrar, complementar e moderar as informações sobre alambiques de cachaça, como:
- localização geográfica
- curiosidades
- detalhes técnicos
- imagens de rótulos
- história do alambique.
Com essa ação colaborativa queremos continuar o trabalho do folclorista Câmara Cascudo, que em 1968 escreveu o livro Prelúdio da cachaça, onde declara:
“o brasileiro é devoto da cachaça, mas não é cachaceiro.”
Mais do que um simples guia de endereços, o Mapa da cachaça pretende ser um espaço vivo e cheio de cultura, curiosidades e experiências – como os verdadeiros alambiques.
E, quem sabe, entre alambiques e amizades, conhecendo mais nosso país e degustando o sabor de nossa cozinha, a gente até encontre uma resposta para a famosa pergunta: “o que é ser brasileiro?” Até lá, de mesa em mesa e de bar em bar, que o brinde seja feito com cachaça!
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