Em 6 de março de 2012, entrei em um avião rumo a Perth, na costa Oeste da Austrália. Foram 27 horas de viagem.
Depois, passei um ano inteiro estudando inglês e, para me sustentar, fiz faxinas em uma universidade fantasmagórica, recolhi copos de cerveja vazios em um pub agitado, trabalhei na colheita de uvas em uma fazenda, lavei pratos em um restaurante gigantesco e entreguei pizzas por toda a cidade.
Como jornalista que sou — e escritor que pretendo ser–, registrei os detalhes dessa rotina suada, numa espécie de diário de viagem. Naqueles tempos de alegria, observava tudo e todos ao meu redor e, à noite, sentava para escrever do lado de fora da casa de um irlandês maconheiro que resolveu me alugar um quarto.
O texto abaixo é resultado direto das minhas observações. Se você planeja morar na Austrália, saiba que Perth é a cidade em que mais há empregos naquele “continente”. É possível, por exemplo, lavar pratos a 20 dólares australianos por hora. Para efeito de comparação, gasta-se 200 dólares australianos por semana para viver, com moradia, transporte e alimentação.
Faça as contas.
Embora o trabalho seja pesado, vale a pena. Depois, você vai poder passar uma boa temporada na Indonésia, na Tailândia, na Europa, em qualquer lugar. Mas, antes disso, leia a matéria abaixo e descubra como funciona a labuta na Austrália.
* * *
O mundo está acontecendo lá fora.
Os técnicos japoneses da usina de Fukushima fazem de tudo para salvar o planeta da radioatividade, o deputado rondoniense Natan Donadon está pronto para permanecer por mais alguns meses cercado por jornalistas, alguns corinthianos andam dizendo por aí que Felipão errou ao convocar Alexandre Pato e a norte-americana Diana Nyad acaba de atravessar a nado os 180 quilômetros que ligam Cuba à Flórida sem usar uma jaula contra tubarões.
Mas quem disse que Jerry se importa? Ele só quer ver desaparecer a crescente lista de endereços que brilha na tela de um velho computador instalado no térreo de um prédio de azulejos sujos no coração do boêmio e bem arquitetado bairro de Northbridge, em Perth, na Austrália.
Jerry tem olhos de chinês, cabelos de chinês, roupas de chinês, rosto de chinês. Tudo para ser um chinês completo. Mas Jerry nasceu na Ilha Maurício, um pedaço de terra bem perto de Madagascar, na África. Faz nove anos que ele comanda as entregas de pizzas numa filial da pizzaria Domino’s, em Perth.
Jerry é o gerente. É ele quem manda na trupe de cinco entregadores (dois dirigem carros próprios, três brigam pela melhor scooter) e no resto da equipe que cozinha e vende pizzas e asas de frango das 10 da manhã às 2 da madrugada. Jerry corre para lá e para cá, tira as pizzas do forno industrial, monta uma caixa em 0,3 segundos e fatia tudo em oito pedaços em menos tempo do que isso.
É incrível.
De repente, ele aparece na frente da estante dos capacetes, mira os olhos no computador, depois no enorme mapa fixado na parede, e diz: “Bruno! Delivery!”. E então o rapaz brasileiro que atende pelo nome italiano para de lavar baldes onde antes repousavam litros de molho de tomate, arranca as luvas de plástico azul descartável, despe o avental vermelho impermeável, veste a jaqueta e diz: “Yes, I can go”.
É em momentos como esse que, em dias gelados, Johan, um estudante colombiano que disputa a melhor scooter com Bruno, agradece — porque ele prefere lavar louças a enfrentar o frio noturno na segunda cidade no mundo em que há mais vento.
Mas nos dias quentes Johan disputa, além da scooter de placa 537 (que alcança 80 quilômetros por hora), a chance de largar as louças e sair para dar um passeio pela bela e organizada Perth. Mas isso não tem importância significativa. Interessante mesmo é lembrar que Jerry é estranho.
Ele fala baixo, sempre olha na altura dos joelhos alheios, inclusive nos momentos em que está mandando. “Could you take this one to Hay Street?”, resmunga. “Of course I can, é o meu trabalho”, retruca Bruno. Jerry é realmente esquisito.
Pelo menos quatro vezes por semana é possível parar na esquina do outro lado da Newcastle Street e observar Jerry sentado atrás do balcão azul e vermelho brilhante, no fim do expediente. Os olhos rápidos averiguando as contas no computador, o enorme forno de pizzas ao fundo, o boné com o logotipo sujo de farinha de trigo, a camiseta amarfanhada embrulhando aquele corpo magro e branco.
Jerry cheira a “subemprego”.
Seu suor é tão fedorento e seu hálito tão forte que, perdoe meus preconceitos, ele se parece mais com subordinado, nunca chefe. Jerry tem todas as facetas de um subempregado brasileiro. Trabalha até tarde, sua litros durante o expediente, veste sapatos desgastados, sabe como lavar uma cozinha inteira em poucos minutos. Mas ele está na Austrália, parceiro.
Quando deixa o trabalho, Jerry monta num Toyota Prius híbrido, prateado, quase brilhante, e sai em direção a sua casa com certeza muito bem aprumada em algum bom bairro de Perth. Depois de dias bem atabalhoados, ele consegue ganhar cerca de 1080 dólares australianos por semana. Essa é uma diferença entre subempregos no Brasil e na Austrália.
É comum encontrar em Perth faxineiros sobre Kawasakis Ninja, cozinheiros indo curtir a lua de mel em Fiji ou entregadores de pizza que juntam dinheiro para passar um mês perambulando pelo Sudeste asiático. Como o Bruno.
Tempo atrás, antes de decidir que ia à Tailândia, o entregador de pizzas paulistano encontrou um pequeno obstáculo. A companhia aérea impediu-o de comprar as passagens por que o passaporte vigorava perto da validade, menos de seis meses do fim. Bruno teve que renová-lo. Mandou um e-mail para a Embaixada do Brasil em Camberra, a capital da Austrália — que não é Sidney –, mas ninguém respondeu. “Brasileiro é brasileiro em qualquer lugar do globo”, pensou Bruno. A Austrália, reafirmo, é diferente.
Lá, as pessoas dizem “thank you very much” e “please” 24 horas por dia, sete dias por semana. Respondem e-mails. Todo esse comportamento quase finlandês reflete também o trânsito nas ruas de Perth.
Contudo, quando Bruno dirige aquela scooter azul-golfinho que expõe violentamente o logotipo da pizzaria norte-americana na traseira, a cena bucólica — que inclui carros enfileirados com seus piscas devidamente acionados — é logo estilhaçada. Não por uma escolha pessoal de Bruno, que voluntariamente faz questão de destruir tal perfeição australiana, mas porque ele, também, é brasileiro.
Os motoristas se assustam ao flagrar uma motocicleta passando entre os carros, entre vãos estreitos. Na Austrália, não há o famigerado “corredor”, muito comum em São Paulo, por exemplo. Inventá-lo em Perth é uma desobediência passível de multa. Quando ouvem as buzinas agudas ecoar a 80 quilômetros por hora entre as portas de aço fabricadas na Ásia, os motoristas australianos arregalam os olhos e com certeza algum deles deve pensar: “What-a-hell???”.
Bruno gosta do emprego.
A rotina o cerca de histórias. O estudante de 26 anos entrega pizzas das 16 às 23 horas, fabrica a massa nos períodos entre entregas, lava as louças e enxágua toda a cozinha – parede, equipamentos, chão – até às duas horas da manhã. Ganha 15 dólares por hora.
Depois da labuta, desamarra a bicicleta de uma grade vizinha a um clube de jazz e cruza oito quilômetros até Bayswater, um bairro residencial de ruas sonolentas. Quando sobram pizzas, Bruno faz questão de levá-las para casa em vez de à lata do lixo. Certa vez sobraram oito. O entregador faminto as ajeitou dentro de um saco plástico e pedalou rumo à geladeira que divide com oito estrangeiros.
Outro dia, Bruno encontrou uma bateria acústica completa em uma caçamba — coisa que não conseguiu levar na bicicleta. E a história que mais caracteriza seu trabalho talvez seja a do colega Oscar, que nasceu em Hong Kong, mudou-se há três anos para a Austrália, hoje usa o próprio carro para entregar pizzas e costuma dizer que a própria namorada é muito feia.
Numa ocasião excepcional, Oscar teve de carregar exatas vinte pizzas que continham carne de porco até um endereço no lado Leste de Perth. Achou o prédio bonito, abriu a porta da frente e entrou. Depois de passar alguns minutos procurando o dono da entrega, percebeu que estava dentro de uma mesquita, que continha muçulmanos que amaldiçoam qualquer cardápio que contenha carne de porco.
Trote mau.
Mas Oscar é como Jerry. Não deu a mínima. Ambos sabem que o mundo continua acontecendo lá fora.
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