Nossas perguntas sobre Lost nunca foram perguntas sobre Lost.
Em 6 anos, milhões de seres humanos passaram mais de 86 horas assistindo a 121 episódios, fora o tempo perdido vendo e criando posteres, gifs animados, textos, cartas de tarô, ARGs, podcasts, vídeos, teorias, camisetas…
Hoje, 23/5, tudo chega ao fim em um episódio de 100 minutos (2h30 na TV).
Ainda que o episódio final seja no estilo da cena do arquiteto em Matrix e entregue todas as respostas (algo improvável, pelo que avisaram os roteiristas), nossas perguntas sobre Lost seguirão intactas amanhã pois elas não são e nunca foram perguntas sobre Lost.
Em vez de listar teorias, previsões e palpites para o fim, falo agora sobre a série como um todo, sem spoiler algum para quem ainda está acompanhando as temporadas passadas. E não preciso nem dizer que esse texto não é sobre Lost e pode ser bem lido por alguém que nunca viu um episódio sequer.
LOST como um meta-mistério
Por um lado, minha conexão com Lost vem do aspecto existencialista da trama, bem focada na humanidade crua dos personagens, não oferecendo saídas ou sentidos transcendentes, tanto na ilha quanto na vida que conhecemos em flashes pra tudo quanto é direção. Já escrevi dois textos com esse foco: “Sobre chão e nuvens: Lost e o sentido da vida” e “Lost: como acabar com qualquer briga de casal”.
Por outro, minha conexão se dá pelo mistério e pela ausência de substancialidade dos elementos da trama, como se fosse tudo um sonho ou uma alucinação. Ou seja, não é uma história com um ou outro elemento de mistério. Lost é um meta-mistério, um mistério que aponta para si mesmo: tudo é questionável, qualquer coisa pode ser um sonho ou pode significar outra coisa, nada é definido em nenhum momento, mesmo as histórias mais factuais.
O mistério em Lost não reside no monstro da ilha, no urso polar no meio da floresta, no aleijado que volta a andar, no cara que não envelhece ou em qualquer coisa estranha que aconteceu, mas no fato de tudo ser como é. É uma questão anterior, ontológica:
“O que é a ilha? Quem são esses seres? Por que tudo é como é?“.
O fascínio de LOST
Por que uma série de televisão nos movimentou tanto? É claro que estamos na era da Internet, mas o mundo online foi apenas um solo fértil, não explica a impregnação em nossa cultura.
Sem falar da produção transmídia e colaborativa (qual outra série tem uma wikipedia própria?), foi a primeira vez que se conseguiu manter uma história por 6 anos sendo que até agora não sabemos de nada, nem mesmo do que vimos na primeira temporada. Não há certeza alguma, tudo pode ser outra coisa, todas as interpretações estão abertas. Nesse sentido, vejo em Lost algo pioneiro, até porque mesmo se um escritor tivesse conseguido tamanha indefinição recursiva (como Borges), não há a mesma dimensão coletiva de engajamento por tanto tempo.
Em 100 minutos, eles não vão apresentar o desfecho de uma longa história; eles vão apresentar a história inteira, desde o começo!
O fascínio que Lost provoca em tantas pessoas vem do fato de todos nós termos uma leve desconfiança em relação a nossas próprias histórias e ao universo como um todo. Não temos certeza se tomamos boas decisões no passado, não temos certeza se estamos mesmo felizes com nosso marido ou esposa, não temos certeza do que estamos fazendo em nosso trabalho, da origem do universo, da lógica por trás da vida e da morte…
Temos muitas crenças, mas no fundo sentimos uma incerteza fundamental. Lost ativa isso ao nos apresentar um meta-mistério igualzinho a esse que nós já vivemos. “O que é o universo? Quem somos nós? Por que tudo é como é?”.
Em nosso mundo, a ciência consegue explicar muita coisa, mas são sempre respostas para “O quê?” e “Como?”, nunca para “Por quê?”. Cercados de filosofias, religiões e livros com leis e segredos, desenvolvemos crenças pessoais que nunca respondem à altura de nossa confusão original nem conseguem encaixar 100% os fenômenos.
E então, quando vemos um programa da TV no qual podemos projetar essas mesmas questões e do qual podemos esperar respostas, colamos ali com a mesma ansiedade dos personagens: “O que é a ilha? O que é a vida?”.
LOST versus Realidade
Ao compararmos o universo de Lost à vida real, a ilha perde fácil, mesmo com suas pirações sobrenaturais, viagens no tempo e curas inexplicáveis.
Se lá eles tem a iniciativa Dharma, aqui nós temos mil Dharmas, desde o próprio budista até os vários ramos da ciência. Temos uma bola gigante que fica muito longe e nos provê luz, energia e calor, além de ser o centro do nosso giro. Podemos enfiar um membro de nosso corpo em um canal dentro de outro corpo e, pronto, algum tempo depois sai um outro corpo dali.
Temos uma rede digital que conecta pessoas de um jeito que nem elas entendem. E essas pessoas morrem, mesmo, pra valer, algo muito mais misterioso do que seres que não morrem ou envelhecem. Elas vivem, pensam, amam, criam teorias sobre a vida, fazem planos, sustentam alguma identidade e, bum, somem, desaparecem, do nada, sem aviso.
Deslumbramento, curiosidade e assombro
Eu não crio teorias para Lost assim como não acredito em grandes teorias para a vida, nem mesmo no relativismo do “Cada um com sua opinião”. Gosto de brincar com diversos mundos e certezas, claro, mas duvido da possibilidade de chegarmos a uma teoria final sobre o sentido da vida assim como duvido disso em Lost.
A visão das pessoas em relação ao universo da série espelha bem o comportamento delas diante das questões da vida. É bonito de ver. Quem é mais niilista (no sentido senso comum) acha que não há sentido algum. Quem é mais existencialista prefere ignorar os mistérios da ilha e focar nas vidas em jogo. É só um e mesmo olho: o que vê a tela e o que vê a vida.
Se os roteiristas construíram bem a história, Lost vai ser definido e, justamente por isso, não vai ter definição alguma. Ou seja, eles vão mostrar as respostas e isso vai abrir uma série de perguntas. Quando um meta-mistério tem todos os conteúdos de mistério solucionados, seu contexto de mistério apenas fica mais nítido, luminoso. É como revelar todas as palavras de uma grande pergunta.
Ao buscarmos por uma grande resposta lá fora (ou lá dentro), deixamos de perceber que já respondemos à grande pergunta da vida o tempo todo, mesmo sem ouvi-la direito. De fato, é nossa resposta que configura a pergunta original, cuja resposta procuramos. É nossa ação que cria o sentido da vida que depois buscamos. Somos a serpente Ouroboros, que morde a própria cauda. Somos a vida criando sentido para a vida e depois se desesperando em encontrá-lo.
Nossa confusão é uma espécie de esquecimento.
E a tragédia está no tipo de sentido que estamos cultivando por causa dessa cegueira em achar que somos seres passivos andando em um universo pré-definido. Não é por acaso que depois nos frustramos com ausência de significado, nos contentamos com vidas medíocres, habitamos mundos opacos, agarramos alguma crença enlatada ou colamos nas cenas de Lost com aquele entusiasmo que não manifestamos na vida, curiosos com o destino de cada personagem ao contrário do que somos com os corpos vivos ao nosso redor.
Por que tanta necessidade de ter certezas e respostas, de viver em bases seguras, de gerar leis e explicações coerentes, de sempre saber quem somos, onde estamos e o que está acontecendo?
Para hoje à noite desejo que o público de Lost fique com uma sensação de deslumbramento, incerteza, assombro – não com respostas. E que leve essa grande pergunta como um olho curioso para a segunda-feira, afinal a história de qualquer um aqui é muito mais misteriosa do que a trama de Lost.
Link YouTube | Promo do episódio final
* A exibição do episódio final começa às 20h (horário de Brasília), basta achar um bom site de streaming – o Matias sempre indica minutos antes no “Trabalho Sujo”. A AXN vai transmitir terça, às 22h.
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