É a obsolescência programada da vida amorosa.

A Lili, minha companheira, tá com o celular meio quebrado. Um inchaço, causado provavelmente pela variedade de reacções químicas adversas de excesso de carga, armazenamento exacerbado de temperaturas não ideais e intrusão de fluidos. 

Trocando em miúdos, a bateria tá empurrando a tela de touchscreen e o smartphone dela tá abrindo. Mesmo assim, com o tenro sonho de manter a integridade física do seu aparelho, ela comprou uma capinha específica, maior, mais gordinha mesmo, pra abraçar toda a geografia do telefone, segurando as aberturas que teimam em aparecer e, com isso, salvando mais um tempo de vida pro iPhone dela.

Mas tá tudo esparramado já.

Nossos relacionamentos começam a ficar cagados quando vamos perdendo um pouco do interesse no cultivo, que nem quando o nosso celular começa a deixar de ser novidade. Mas o medo financeiro faz com que seguimos fazendo algo aqui e ali, afinal, o fim abrupto vai ser dolorido. Quando adquirimos o último modelo, ah… nutrimos um amor sem igual, avançamos com cuidados de bebê. Colocar no bolso do jeito certinho e sentir como o novo formato nos cai bem. Passamos paninho no espelho negro da tela, programamos cada aplicativo na ordem que julgamos correta, limpamos as fotografias toscas, ficamos horas escolhendo as canções certinhas pra tocar nos fones dessa belezinha. 

Deitados na cama, de ladinho, olhamos para a luzinha que pisca intermitente enquanto carrega a bateria novinha que sabemos que vai durar mais, muito mais que a daquele trambolho que carregávamos nos últimos meses. 

Isso soa muito parecido com a tua última relação, né?

Isso até a primeira queda, aquele riscadinho que nem sabemos de onde veio. Disso pra deixar a tela marcada de dedos, os fones com o fio emaranhado e cheio de nó dentro do bolso… A gente deixa cair umas gotas de cerveja em cima dele no bar, se a bateria morrer de novo, foda-se, "quem liga mesmo pra essa merda", não é mesmo?

Fora a indecisão de comprar um aparelho novo. Todos os modelos tem algo que te deixa com o nariz torcido. Esse não tem tamanho bom (quantas vezes você já ouviu essa?), aquele não obedece aos comandos na velocidade que eu quero e aquele outro ali é lindinho demais, mas o sistema operacional não é livre pra gente colocar o que a gente quiser nele.

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Quando criamos uma narrativa de contos de fadas para os nossos relacionamentos, todos esses anseios estão travestidos por camadas de que, em nossa cabeça, deveriam permanecer imaculadas, limpas, íntegras, impolutas. Até que começamos a ver os risquinhos na relação, uma sujeira aqui que deixa a conversa torta, o volume não funciona mais direito e falamos alto demais e escutamos bem pouquinho, nos irritamos com a falta de velocidade nas resoluções, vamos deixando nossos aplicativos todos bagunçados, o de atenção, o que pisca alertando que precisamos fazer algo, conversar, trocar, ajudar o outro a avançar, ceder espaço.

Tudo isso porque o interesse inicial foi corrompido pela realidade da rotina. O bolso aperta, a poeira acumula nos cantinhos, fica engordurado, a capa de proteção escurece, e daí nós mesmos, sem ter nem essa ideia, já botamos essa obsolescência programada, um prazo de validade pra que fique mais fácil de se jogar fora e adquirir outro.

Ou seja, vivemos sempre um relacionamento pensando já no outro. Para as companhias que vendem celulares, é essa a ideia. Agora, pra quê você entra aqui pensando no ali?

Amor que causa desconforto é um celular superaquecendo na mão.

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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados