Um ritual. Passara toda a sétima e oitava série imaginando como poderia se aproximar dela e finalmente aconteceu o convite. Meio encostado no batente da porta da classe, meio olhando para baixo, meio que falando mais baixo do que alto, ele meio que comentou que tinha uma sorveteria nova no bairro, coisa de duas quadras do edifício do colégio, e que talvez, não era certeza, ninguém tava muito aí, que tudo bem se ela dissesse que não, que ela poderia ir com ele e mais uns dois amigos lá experimentar a sobremesa, que poderiam ir andando, que se ela quisesse, claro, poderia chamar mais alguma amiga, que eles pagariam, claro, o sorvete delas.
Daí, com ela dizendo que sim, que amanhã poderia ser um bom dia, fez com que ele cumprisse os ritos de se arrumar para o encontro. Arrumou os cabelos com umas pomadas que o irmão aos velho tinha no banheiro. Claro que passou produto demais e seu topete ficou meio estranho. Trocou de roupa algumas vezes e ficou bravo quando sua mãe entrou no quarto perguntando da bagunça de camisas e tênis espalhados pela cama. Pegou escondido o perfume que o pai dizia usar quando tinha encontros importantes no trabalho e se cheirou percebendo o invólucro da vitória apertado em seus ombros e no peito. "Agora vai", pensou se olhando no espelho enquanto repetia gestos e feições típicas de quem não está se importando muito. Por dentro, sua boca era um deserto e o estômago estava embrulhado.
Na saída das aulas, fez umas poses forçadas no muro da escola, como se estivesse na dele, como se fosse um blasé, como se ele fosse muito "cool" para se importar com a sorveteria ou com as companhias que estariam com ele na hora da ida. Foram em três, ela e ele mais um amigo. Lá, ela pediu para ir ao banheiro lavar as mãos e ele obrigou o amigo a ir embora, prometendo dois sorvetes na próxima ida. Queria ter o tempo para se mostrar para ela seu verdadeiro "eu" que ele ensaiou a noite toda.
A menina retornou e parecia ter passado três vidas entre o sair do banheiro e desfilar com seu AllStar e uniforme da escola até o canto do balcão onde ele a aguardava. Ele decorou cada detalhe do jeito de caminhar dela e as palavras escorregaram goela abaixo junto com o sorvete. Dois minutos sem falar nada até que ela perguntou do outro amigo e ele disse que houve uma emergência e que, enfim, estavam só os dois.
Tomaram o gelado, ele pagou. Ficaram mais uns bons dois minutos na calçada na parte de fora, ela olhando o final da rua, ele "não ligando" roçando a borracha branca da sola do tênis de um pé no outro. Até que ela perguntou se ele a achava bonita. Voltou o deserto e o laço na barriga. Olhou pra ela e disse que sim, mas um falar meio para dentro, como se chupasse o ar em vez de expeli-lo. Comentou, quando se recompôs, que desde a sexta série achava ela a menina mais bonita da turma, que sempre quis falar isso pra ela. A menina sorriu e perguntou porque, então, ele não a chamou para sair antes, quis saber se na festa da Bia ele queria ter ficado com ela, porque ela percebeu ele tentando se aproximar, ciscando por perto dela o bailinho todo, mas sem de fato chegar junto. E ele comentou que sim, que queria. Disse que não sabia ao certo porque não teve a coragem de fazê-lo de fato.
"E você ainda quer?", ela perguntou. "Ficar comigo?", ela enfatizou.
Deserto. Nó na pança.
Tudo o que o garoto conseguiu foi balançar a cabeça afirmativamente, e não afastou o rosto quando ela se aproximou devagar e fez os lábios dela encostarem nos dele num beijo simples, mas que era uma prova bem contundente na cabeça dele de que ela também gostava dele.
O céu. Pegou na mão dela, andaram mais umas quadras ainda sem falar nada, mas estranhamente o entrelaçado no bucho havia sumido e dado lugar a uma avenida de euforia e da certeza dos jovens. Agora estava tudo resolvido e bem. Havia alcançado seu grande objetivo. Tinha dado certo. Trocaram mais alguns beijos pelo caminho, ele se puxando para colocar as costas contra alguma parede e trazê-la para perto para uns amassos. Já quase perto da escola, a postura era da mais alta qualidade, tranquilo e sereno, como se estivessem juntos há séculos. Contou pra ela de alguns planos que estava pensando para as férias, de namoricos e encontros, de passeios e conversas. Tinha coisa boa de sobra pra fazer. "Mas… eu tô indo pra praia com os meus pais agora nas férias". Ela fez despencar a frase feito pedregulho na testa dele. "Mas amanhã você vem? Na última aula?", questionou ele como quem quisesse a última gota do pote. "Não venho. Amanhã tiro o dia pra arrumar as coisas com ele e daí, à noite, nós vamos".
Olhou para os dois lados buscando soluções, apertou a mão dela sem muita força tentando retardar a passagem do tempo, montou quebra-cabeças na mente e chegou à óbvia conclusão que teria de esperar. Aguardaria o regresso dela para prosseguir com o sonho. Afinal, para quem esperou alguns anos, o que seriam duas ou três semanas longe? Voltou a sorrir, pediu um beijo pra ela e foi prontamente atendido. E soltou: "Já posso te chamar de namorada?". Novo silêncio, agora com ela olhando para o chão. "Eu queria não pensar nisso agora. Eu quero pensar na praia, aproveitar a praia. Acho que é melhor a gente falar. Da praia".
Mas não falaram. Ficaram quietos e imóveis, como se o existir de um atrapalhasse o existir do outro, como se qualquer átomo em movimento pudesse acarretar em uma explosão nuclear. Até que ela recebeu uma mensagem com o aviso de que sua carona estava chegando e precisava ir embora. Sem muito jeito ela se levantou, puxou ele também para cima e lhe deu mais um beijo. Saiu sem falar mais coisas. Sabia que se veriam no ano seguinte. Ele ficou mais meia hora na quadra, olhando as lascas que saiu da pintura das traves, medindo os passos entre uma linha lateral e outra. E foi pra casa, não sem antes passar no banheiro e jogar uma água no cabelo.
Não queria andar na rua sozinho com aquele topete estranho.
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