“Não há palavras para explicar sua arte. Por mais que consigamos expressar em crônicas nossas impressões e nosso espanto, ficamos miseráveis aos pés do alta-mor no qual ele elogia a beleza no sentido em que Veronese a concebeu.
Cedo ou tarde, alguém terá que falar da maternidade de Manara, de como ele conseguiu dar a luz a muitas filhas brilhantes em uma só vida, tanta graça concentrada em um único momento: o momento da visão milagrosa em que a carne se torna um conto de fadas. Ele semeou suas filhas no mundo, cada uma delas com a capacidade de transformar tudo que está a seu redor.”
— Vicenzo Mollica, 2008.

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Quem é o artista capaz de provocar comentários tão entusiasmados do escritor italiano Vicenzo Molicca? Aliás, nem parece ser entusiasmo o que move essas frases, mas sim uma devoção quase religiosa ao artista elogiado. E é fácil compreender o porquê, já que não se pode esperar menos de um artista que ousou resumir cinco mil anos de história humana em um punhado de ilustrações eróticas.

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Quando comecei essa série Mulheres e Nanquim, tinha certeza de duas coisas.

A primeira é que, apesar do nome, as matérias não poderiam se limitar apenas ao trabalho em nanquim dos grandes artistas que dedicaram seu talento a desenhar o corpo feminino.

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A segunda é que, em algum momento, teria de falar de Milo Manara, um sujeito tão foda que conseguiu convencer ninguém menos que Frederico Fellini a converter dois roteiros originais do mestre do cinema italiano para o mundo dos quadrinhos.

E isso representaria encrenca.

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Encrenca pois Manara tem um enorme acervo de trabalhos, a maior parte de qualidade espetacular.

Isso torna muito difícil selecionar o que merece ser ou não publicado em uma matéria a seu respeito — pois, na verdade, tudo merece. Sua produção é tão cornucópica que é quase impossível fazer uma retrospectiva de todas as suas obras.

Feitas os devidos esclarecimentos, vamos ao que interessa.

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Milo Manara começou sua carreira em 1968, quando estava no primeiro ano da faculdade de arquitetura em Veneza.

Então com 23 anos, o jovem nascido em Luson, filho de uma professora e de um funcionário público começou a desenhar para a revista em quadrinhos Genius, da editora Furio Viano.

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Logo a seguir, passou a trabalhar para a editora Ediperiodici, conhecida na época por ser a principal publicadora de material erótico na Itália.

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Na obra , que faz uma retrospectiva de sua carreira, Milo Manara comenta sobre suas experiências iniciais:

“Em minha primeira história erótica, tentei expor todos os detalhes. Eu me propus um desenho idealizado por insistir nos aspectos cerebrais e intelectuais da história. Para distinguir meu trabalho da pornografia, tentei tratar mesmo as piores coisas com humor e sem evocar sentimentos de culpa.”

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Milo Manara trabalhou para a Ediperiodici até 1975, e é desse período seu primeiro trabalho de fôlego: Jolanda de Almaviva contava a história de uma sedutora corsária que não tinha muito pudor diante de seus marinheiros.

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Em 1978, Manara passa a publicar as histórias de Giuseppe Bergman na revista francesa , uma reflexão moderna e pouco convencional sobre a possibilidade de vivermos uma aventura no mundo moderno.

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A primeira história do anti-herói de Manara tem o título de HP e Giuseppe Bergman, sendo que as iniciais HP são uma homenagem a outro grande quadrinhista italiano, Hugo Pratt, de quem Manara já era amigo

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Manara revisitou seu personagem Giuseppe Bergman em vários momentos de sua longa carreira, ambientando suas aventuras sempre em locais pitorescos.

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Em , o artista nos conta o processo criativo que envolve essas histórias:

“Viajei pela Ásia para elaborar as entrevistas de Giuseppe Bergman.
Essa foi uma viagem genuína, no estilo da clássica viagem de aventura. Quando viajo dessa forma, tiro um monte de fotos e faço rascunhos. Posso trabalhar em qualquer lugar, mesmo durante viagens.”

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Il Gioco

Mas é em 1983, com o primeiro volume de (no original, ) que Milo Manara alcança fama (e má-fama) internacional.

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é uma ousada história sobre um curioso dispositivo tecnológico que, implantado no cérebro de pudorosas moças de família, permite ao detentor do controle remoto do aparelho colocar a vítima em um estado de insaciável e desgovernada excitação sexual.

Seguiram-se três sequências da série, publicadas em 1991, 1994 e 2001.

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Clic
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É na série que Manara faz seus trabalhos mais ostensivamente eróticos. E é bom utilizar essa palavra, e não pornografia, pois o mestre italiano prefere deixar claro que há uma distinção entre uma e outra forma de expressão artística da sexualidade humana, como esclareceu em :

“A indústria pornográfica existe porque atende a uma demanda, mas ela não soluciona nada. O consumidor pode apenas sentir culpa. Nós não devemos mais nos sentir envergonhados e, desde que haja certo grau de ironia, somos capazes de falar de qualquer coisa. Precisamos reconhecer nossas fantasias e encará-las abertamente.
É por isso que eu falo de fantasias evitando qualquer forma de sentimento de culpa. Não obstante, a linha divisória entre pornografia e erotismo é muito subjetiva. Não é só uma questão de qualidade. Se o trabalho nos faz felizes e atende nossas expectativas ao expressar nossas fantasias, então é erotismo. Eu endosso a afirmação de Woody Allen, de que “a pornografia é o erotismo dos outros”.

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Explorando o corpo feminino em suas obras, seria Milo Manara machista? Em 2010, o artista fez uma visita ao Brasil. Em entrevista ao Estadão, falou sobre suas leitoras e de sua relação com as mulheres que conhecem seu trabalho de forte carga erótica:

“Há um monte de mulheres entre meus admiradores, eu posso mesmo dizer que elas são maioria. Com efeito, muitas garotas adoram meus desenhos e eu as encontro nos festivais, palestras, sessões de autógrafos. Não sei ao certo por que tenho sucesso, mas pode ser que elas se sintam bem representadas em minhas histórias, que elas compreendam que eu desenho mulheres com respeito.
De toda maneira, minhas heroínas são sempre mulheres à frente de todos os estereótipos, não submissas, independentes. No Clic, justamente, somente um artifício tecnológico que os homens carregam é que pode condicionar a vontade de uma mulher. Até então, ela os recusava. No meu erotismo, a mulher é sempre um sujeito sexual, mais que um objeto.”

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Desde o início desse reconhecimento mundial ficou claro que Manara possuía um raro dom de perceber o corpo feminino.

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De qualquer forma, suas mulheres são sempre muito semelhantes anatomicamente: esguias mas calipígias, de seios pequenos, lábios fartos e olhos ligeiramente orientais.

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Por isso, é prova do talento de Manara o fato de que ele, desenhando corpos femininos sempre inspirados em um mesmo modelo ideal, esguio e caucasiano, seja capaz de nos deleitar e surpreender a cada trabalho.

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A respeito de sua inspiração para desenhar corpos femininos, Manara deu-nos algumas pistas na entrevista dada ao site Café com Letras:

“Sou inspirado por todas as mulheres, não só as atrizes, jornalistas, esportistas, mas as meninas que encontro na rua. Minha mulher ideal é possivelmente o resultado das características de muitas mulheres que conheci, e eu tento tirar a própria essência.”

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Corto Maltese
Verão Índio

A partir de outubro de 1983, com textos de Hugo Pratt, seu mentor e amigo, Manara desenha para a revista , e seu primeiro trabalho foi , considerada uma das obras-primas dos dois artistas.

Em 1986, Viagem a Tulum, roteiro de um filme de Federico Fellini que jamais seria realizado, é publicado em seis partes no jornal italiano de grande circulação . Manara é convidado a elaborar um desenho em preto e branco para ilustrar cada uma das publicações do roteiro. Nesse mesmo ano, o desenhista cria um cartaz de divulgação para o filme  de Fellini.

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Ao conhecer o trabalho de Manara, Fellini logo percebeu sua genialidade, como disse em entrevista publicada em 1987:

“O lápis, as tintas e os meios-tons do amigo Manara são o equivalente à encenação, aos figurinos, aos rostos dos atores, às decorações e às luzes com que eu conto histórias em meus filmes.”

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Viagem a Tulum

Dessa parceria inicial com Fellini surge uma proposta: desenhar como quadrinhos todo o roteiro de .

Manara aceita o desafio e, em 1989, é publicada a sensacional versão para a nona arte do filme de Fellini, que recorre a símbolos junguianos e alusões aos livros de Carlos Castañeda, que conheceu em 1985, a fim de contar uma delirante história sobre a evolução da consciência humana.

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O mestre da nona arte assim registrou o trabalho em conjunto com o mestre da sétima:

“Com Fellini trabalhei de uma forma bem direta, nós nos encontrávamos com frequência e ele me deu vários detalhes sobre cada uma das páginas (ele realmente gostava de desenhar), com cenários, diálogos, etc. Portanto ele era o diretor e eu era apenas seu único câmera. Fellini amavelmente infundiu seu espírito, expressou-o das imagens aos diálogos, e dos diálogos à ação.”

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Viagem a Tulum

Talvez pelo nome dos artistas envolvidos, ou pela aura de roteiro infilmável, esse ressoa de formas surpreendentes até hoje em dia.

Em 2011, a jornalista italiana Laura Maggiore escreveu um estudo de 216 páginas intitulado Fellini e Manara. No mesmo ano, foi produzido um curta-metragem, dirigido por Chelsea McMullan, narrando o trabalho de Fellini e Manara sob o ponto de vista desse último.

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Sonhando com Tulum

Ainda em 2011, o diretor italiano Marco Bartoccioni, junto ao antigo assistente de direção de Fellini, Tiahoga Ruge, produziu , longa que presta homenagem ao trabalho de Manara e Fellini.

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El Gaucho

Mas retornemos a Manara. Em abril de 1991, Milo Manara e o não menos genial Hugo Pratt publicam , uma história situada na Argentina e que trata do contexto histórico da Guerra Anglo-Espanhola.

Em junho de 1992, ocorre nova parceria entre Manara e Fellini com a publicação, na edição nº 15 da revista , da obra , outro roteiro do famoso diretor italiano, também jamais transformado em filme.

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Federico Fellini teve uma participação ainda maior na elaboração da versão de sua história para a nona arte, pois elaborou os storyboards que serviram de base para os desenhos de Manara.

Infelizmente, o falecimento de Fellini em outubro de 1993 deixou a obra incompleta.

Em 1996, Manara publica Gullivera, sua versão erótica para o clássico de .

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Kama Sutra

Em 1999, publica o seu , um trabalho sem brilho e desprovido do esmero artístico da obra homônima desenhada por Georges Pichard, embora tenha seus bons momentos.

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O Asno de Ouro de Apuleio

Porém, Milo Manara se refaz da falta de criatividade repentina ao publicar, no mesmo ano, sua sensacional versão para .

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Tre ragazze nella rete

Na virada do milêncio, além de criar seu sensacional Bolero, Manara publica , uma história sobre um trio de lésbicas que vitimiza e abusa de um desacordado criminoso sexual que foi pego, literalmente, com as calças na mão.

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Em 2004, Milo Manara trabalha com o genial Alejandro Jodorowsky na narrativa sobre a história da família Borgia no período da renascença italiana.

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Misturando fatos históricos com o imaginário erótico masculino, a série Borgia prometia ser um estrondoso êxito e um marco na carreira de ambos os artistas.

Infelizmente, o resultado final parece ter ficado abaixo das expectativas, tendo Jodorowsky decidido contar de forma apressada e em um último volume uma série de empolgantes eventos históricos que exigiriam uma elaboração mais minuciosa e demorada, digna do talento de Manara.

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X-Men: Ragazze in fuga

Em 2009, Manara publica pela Marvel/Panini italiana a obra , com enredo de Chris Claremont.

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Contes Libertins

Recentemente, em 2012, Manara publicou , obra na em que ilustra as fábulas eróticas de La Fontaine.

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Milo Manara, como se vê, continua produzindo com excelência até hoje, criando cenas evocativas e histórias inspiradas sempre no erotismo e na mulher, como bem resumiu o roteirista italiano Vicenzo Cerami:

“Os temas desenvolvidos na obra de Milo Manara giram em torno do Amor e da Mulher. Hoje em dia, graças às novas estruturas da sociedade ocidental, o papel da mulher chega ao primeiro plano e torna-se um tema explosivo. Eros dissemina-se entre produtos de consumo e a reprodução da espécie.
Nossa época, dominada pelas leis do mercado, está conhecendo uma profunda transformação, sem dúvida irreversível. Os corpos femininos, enquanto ícones mais representativos de Eros, encontraram em Manara seu campeão definitivo.”

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“Milo imediatamente percebeu que Eros não é lido em um corpo esculpido no nada. A beleza que ilumina o desejo é a luz que deita sobre um corpo, inundando de crepúsculo ou de noites inflamadas tudo à sua volta.”

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“A sexualidade ocupa todo o espaço, enfrenta os contornos e permanece no escuro. Encontra-se na nudez nua. Manara trata frequentemente do passado, com cores que ilustram, ao fim das contas, a imagem da mulher moderna.”

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Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."