Diminua as luzes da alma e sirva seu drink favorito. Procure um lugar confortável para reclinar e destrave sua mente. Deixe os pensamentos fluírem em busca de novas perspectivas. Dispa-se. Experimente sem saborear. Transcenda no mesmo lugar.
Ou não faça nada disso. Nem mesmo o contrário.
Há vinte anos, Miles Davis morria. Não era tão velho, mas longevo perto dos grandes mitos do jazz. Na verdade, nunca foi velho. E dificilmente será.
Sua obra pode ser a síntese de todo o estilo. Pode ser também a saturação mais tediosa. Como líder de banda, ele amassava as harmonias como um papel. Jogava-as no chão para a banda pisotear. Tornava a pegá-las e desamassava. Desamassava. E esse papel amarrotado era sublime. Incomodamente sublime.
Miles era contrário a ensaios. Entendia que repetição roubava o essencial da arte. Dessa forma, sua brutalidade artística permaneceu no sangue daqueles que passaram por suas mãos. Chick Corea, Herbie Hancock, Keith Jarret e o brasileiro Airto Moreira são ainda hoje os hospedeiros desse vírus libertário.
Incansável na sua curiosidade, se tornou uma espécie de colagem musical do século XX. Ao se casar com a pantera negra Betty Davis, o artista foi apresentado a psicodelia de James Marshall Hendrix. Assim então decidiu plugar suas baterias e transcender mais uma vez.
Como se fosse uma tenda cigana, reuniu as mais diversas aves da melodia. Todas empoleiradas, mas com as asas prontas para se abrir. E como se algum sinal divino surdamente fosse percebido, todas elas alçaram voo simultaneamente. Quando perguntando sobre qual o nome dessa revoada musical, Miles simplesmente respondeu: Chame do que quiser.
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Embora transcedente, toda essa revoada também era agressiva. Cortante pela sua crueza áspera, como o boxe que o trompetista praticava. Santana uma vez definiu a música de Miles como “jab, jab, jab e direto”. Miles chegou a comparar a arte de fazer música com a arte de boxear, que exigia coragem e fluidez. Assim como as esquivas de Jack Johnson e Sugar Ray Robinson.
Em setembro de 1991, o Nirvana rasgava os falantes do mundo com o seu furioso Nevermind. Miles provavelmente deve ter olhado para esse novo horizonte que se abria. Talvez o futuro lhe pareceu não mais lhe pertencer. Ou talvez ele percebeu que era hora de alcançar outra dimensão. Talvez decidira se tornar divino de vez.
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