Eu, Jader Pires, sou editor do PapodeHomem há dois anos, com mais um par de temporadas colaborando com o portal. Basicamente, meu negócio é a ficção e crônicas, escrever sobre o cotidiano mais ralé de uma maneira estranha ou doce ou potencializada com auras de momento heroico. É a ficção da realidade, eu gosto de contar histórias.
Todo contador de “causos” tem que ter experiência de vida e repertório (isso serve pra todo jornalista também, lá na frente). O primeiro vai dar justamente todas as visões que o escritor precisa pra botar em prática a vontade eterna de reinventar o que tá na cara de todo mundo. O repertório, ou seja, a leitura de tudo o que pode ser útil, vai te dar tudo o que precisa pra sua história ser contada da maneira mais gostosa e oportuna possível. A leitura vai render ferramenta, ingredientes, qualquer analogia que você queria usar pra montar o seu equipamento literário.
E foi nesse quesito que eu tive que correr contra o tempo.
Comecei a ler muito tarde, quase tarde demais pra contar pra vocês o que vou contar. Eu não li nenhum livro na época de colégio, não sentei o rabo pra folhear nenhuma das obras obrigatórias pros vestibulares. Nada. Livro era um porre, coisa de velho, Machado de Assis, cara chato. Pra ajudar, a cultura brasileira deixava a desejar – diante dos meus olhos de menino – e eu gostava mesmo era dos filmes de Hollywood, das aventuras dos X-Men nas histórias em quadrinhos, dos caminhos dos lutadores do Street Fighter no fliperama do boteco perto de casa.
Meu primeiro livro lido mesmo, de fato, na vontade da pegada, foi o 1984. Eu comprei esse livro na livraria porque eu gostava muito, lá pros idos de 2004, da banda Incubus. Nesse ano, eles lançaram um disco chamado A crow left of the murder, que tinha uma canção melosa chamada “Talk shows on Mute”. Essa música tinha um clipe que mostrava um programa de televisão feito e apresentado por pessoas com cabeça de animais. Lendo sobre o disco, sobre a manda e sobre essa música, descobri que todo o vídeo fazia referência ao livro A Revolução dos Bichos, do escritor inglês George Orwell. Bem, era a época em que outro George – o W. Bush – invadira o Iraque atrás do Sadam e a porra toda. O mundo estava contra autoritários no poder, a putaria toda instaurada e li, ainda sobre o Incubus e o disco deles, que o álbum todo em questão havia sido feito contra a política externa do presidente Bush.
O refrão dessa música diz:
Come one, come all
Into nineteen eighty-four
Yeah, three, two, one…
Lights! camera! transaction!
Nineteen eighty-four, traduzindo na linguagem universal dos números arábicos, é 1984:
Winston, herói de ‘1984’, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico. De fato, a ideologia do Partido dominante em Oceânia não visa nada de coisa alguma para ninguém, no presente ou no futuro. O’Brien, hierarca do Partido, é quem explica a Winston que ‘só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade – só o poder pelo poder, poder puro.’
1984 | Livraria Cultura
Fiquei intrigado pra cacete com o potencial do livro, comprei e li. Menos de uma semana. Fodido demais. No mesmo mês, matei o Laranja Mecânica (sim, o livro que deu origem ao filme do Kubrick) e o Admirável Mundo novo, do Aldous Huxley. Uma trinca de sociedades distópicas pra me mostrar tudo o que eu havia perdido em anos de ostracismo literário.
Daí pra frente, o resto é história. Descobri John Fante, o Grande Gatsby, os olhos oblíquos e dissimulados da bela Capitu, todos os neologismos do Grande Sertão Veredas, a delícia triste do Mia Couto, o pessimismo inevitável do Philip Roth, Dalton Trevisan, Saramago, o Gabo, a Virginia Wolf, a velha safada da Casa dos Budas Ditosos, o mundo todinho nele todo.
Sempre que penso em leitura, fico sempre com um tico de arrependimento de ter começado a ler tarde, quase tarde demais.
Só que esse tarde demais nunca chega, “antes tarde do que nunca” diriam os sábios desse mundão de meu deus. Começar a ler é sempre cedo, é sempre na hora certa. Daí, basta querer mostrar – pra quem não lê – que dá pra começar a ler. Nesse engodo todo, tem o projeto Leitura Alimenta.
Na maior simplicidade, você pode doar um livro pra que ele seja delicadamente acoplado a uma cesta básica que será doada.
O projeto
Leitura Alimenta foi desenvolvido com a intenção de criar o hábito da leitura em pessoas que têm acesso restrito a livros.
Por isso, a Livraria da Vila e a Cesta Nobre, parceiras do projeto, convidam você para doar livros novos ou usados, que já foram lidos e hoje estão perdidos em gavetas e prateleiras, para serem incluídos em cestas básicas distribuídas a famílias por todo o país.
Doar é fácil: basta levar seus livros (leia aqui algumas restrições às doações) a uma das unidades da Livraria da Vila (clique aqui para descobrir o endereço das lojas).
Se você não quiser se desfazer de sua coleção, também poderá, em breve, colaborar comprando um livro virtual, cuja renda será revertida inteiramente para a compra de livros reais.
A sua participação é essencial, seja doando seus livros ou divulgando o projeto para seus amigos.
Juntos, vamos saciar a fome das pessoas por leitura.
Guia mais simples e fácil do mundo para começar a ler e/ou estimular a leitura
1. Seja uma pessoa curiosa (todas as pessoas são curiosas);
2. Quando tiver curiosidade por algo, pergunte ou pesquise. Pode ser que você descubra algo que pode mudar sua vida;
3. Achou algo que tenha a ver contigo? Com certeza existe um livro que conta uma história foda sobre isso;
4. Volte às pesquisas e ache um livro que conte o que você quer ouvir;
5. Compre o livro e leia;
6. Atice a curiosidade alheia. Assim o ciclo recomeça na outra ponta.
Nos livros, a Sherazade – a gatinha que narra as Mil e Uma Noites – conquistava a atenção do rei Xariar justamente fisgando-o pela curiosidade. Mas você já deve saber porque, né?
Não?
Então senta aí que eu vou te contar. Era uma vez…
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