Um completo estranho, sentado ao mesmo tempo que eu em frente ao seu PlayStation 3 em algum outro lugar desse planeta chamado Terra, acabou de dedicar três horas da vida dele a me guiar por uma jornada e me ensinar a ser como ele.
Nós não trocamos sequer uma palavra e não sabíamos nem mesmo o nome um do outro durante todo esse tempo.
O estranho me ajudou. Me mostrou onde estavam as coisas. Teve paciência comigo quando errei. Esperou por mim quando fiquei para trás e ficou para trás nas partes em que eu precisava ver as coisas por mim mesmo. Preocupou-se em ter certeza que eu não deixaria de passar pelos locais importantes e visse as coisas interessantes.
Com genuína surpresa, concluí: foi a primeira vez que um “jogo de videogame” me fez experimentar, em vez de agressividade, competitividade ou rivalidade, o sentimento de generosidade.
ᔥSoundcloud | Trilha sonora do jogo e deste texto
Sozinhos, mas juntos
Journey é um software interativo para PlayStation 3. Você joga com um controle, olhando para a TV, mas, como pode ver pelas aspas acima, estou tendo muita dificuldade em chamá-lo simplesmente de um jogo de videogame. Me parece uma definição insuficiente. No entanto, vamos seguir com esse conceito.
Você controla um personagem sem nome e com vestes vermelhas esvoaçantes. O objetivo, que logo fica claro, é cruzar o deserto até chegar ao alto de uma montanha distante no horizonte.
Para chegar lá, você vai passar por diversas áreas diferentes, e aqui entra a alma de Journey, o que torna ele uma experiência tão incrível: você não estará necessariamente sozinho.
Em cada área, você encontra uma outra pessoa. Alguém como você, com um personagem idêntico ao seu, jogando o mesmo trecho do mesmo jogo, ao mesmo tempo. A respeito um do outro, vocês não sabem nada além do fato de ser outro ser humano, ali, controlando aquele personagem junto do seu. A única forma possível de comunicação é um pequeno som e uma pequena luz para chamar atenção do outro explorador.
Uma experiência de existência compartilhada, através de um videogame. O quão louco é isso?
Jenova Chen, o diretor e maior mente criativa por trás de Journey, recentemente deu uma entrevista curta e ótima, na qual cita aspectos espirituais, fala da importância da trilha sonora orquestrada (ela foi composta durante três anos) e referencia Jornada do Herói, de Joseph Campbell. Meu trecho favorito:
“Nós observamos os jogos online para consoles e vimos que existe muita competição… as pessoas têm imagens muito negativas umas das outras. Quando você está em um jogo online, sente que todo mundo é meio cuzão.
Quando nós observamos [isso], pensamos se poderíamos criar um jogo no qual as pessoas realmente gostassem umas das outras ou se sentissem bem a respeito de estar junto com outro ser humano. Acreditamos que, pela natureza humana, este é um sentimento de que precisamos, e que as pessoas iriam gostar disso.”
O treinamento
Cheguei ao fim dessa jornada duas vezes, na verdade. A primeira, porém, foi do jeito “errado”: em três sessões curtas (o jogo não dura muito mais do que um filme, então o ideal é começar e terminar de uma vez), sempre dividindo atenção com conversas por Facebook ou SMS. Já achei o jogo sensacional nessa primeira experiência, dividindo o protagonismo com outros seres cambaleantes, mas somente na segunda vez eu tive a experiência motivadora desse texto.
Ao começar a minha segunda jornada, em vez de encontrar um personagem com as vestes vermelhas iguais às minhas, me deparei com um ser mais angelical, vestindo branco e dourado. Diferente dos seres vermelhos que encontrei da primeira vez, ele não parecia perdido. Não parecia compartilhar o meu objetivo, o meu esforço de chegar ao final. Parecia mais tranquilo.
Tomando a frente, ele me guiou (chamando com repetidas sequências daquele som, a única forma de comunicação no jogo) até dar a volta em uma queda de areia, atrás da qual havia um item brilhante escondido. Não o percebi da primeira vez que passei ali, e certamente não perceberia de novo. Aquele foi o momento quando entendi: ali estava alguém que já havia chegado ao final, conhecia cada canto desse mundo, e tinha voltado para guiar outra pessoa.
Essa outra pessoa era eu.
A pessoa controlando o ser branco não tinha motivo algum para fazer aquilo. Ela já havia terminado a jornada. Mas teve a generosidade de voltar e gastar seu tempo guiando outro jogador, dedicando-se a melhorar a experiência de outra pessoa. Descobri vários locais incríveis e coisas bem escondidas, unicamente graças à generosidade dessa segunda pessoa. Uma pessoa real, que existe, fora desse videogame, no mesmo mundo que eu, mas que não sei quem é.
Passei as próximas três horas na companhia dessa pessoa, até chegar, mais uma vez, ao final da minha jornada.
E descobri que agora também poderia me vestir de branco e dourado. Eu havia sido treinado para ajudar outras pessoas.
ᔥYouTube | Tente não se emocionar com este trailer
A vontade de retribuir imediatamente aquela generosidade era grande no meu coração, mas eu não tinha muito tempo. No pouco que tinha, descobri que um dos micro-objetivos do jogo era sentar em meditação por 20 segundos com outra pessoa.
Há um botão para sentar, mas ele não é óbvio ou necessário em momento algum do jogo. Esperei um pouco até encontrar outro jogador. Quando ele, vermelho com a inexperiência, me viu de branco e dourado, deve ter sentido o mesmo que eu havia sentido três horas antes. Comecei a sentar e levantar repetidas vezes, até o outro jogador entender a sugestão de que ele fizesse o mesmo. Após alguns momentos de hesitação, deve ter descoberto o botão para fazer isso e sentou.
Ficamos ali, sentados juntos no meio do jogo. Havia um cenário incrivelmente bonito ao nosso redor. Uma linda música suave tocava. Vinte segundos depois, um com a ajuda do outro, completamos a nossa pequena meditação.
Ele deve ter se sentido grato.
* * *
A grande novidade dos games neste maio de 2012 é Diablo III, um jogo cujas principais mecânicas envolvem matar, amaldiçoar, roubar e revender tesouros. Não há absolutamente nada de errado com isso. Mas para mim é reconfortante saber que Journeybateu o recorde de vendas da PlayStation Store, tanto nas Américas quanto na Europa, desbancando um jogo com sangue até no nome.
Fico feliz em ver que, assim como no cinema há, para cada Os Vingadores, um Pina, também há cada vez mais nos games espaços para experiências sublimes.
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