Poucos adultos conseguem entender a mente de um jovem. Ao crescermos, parece que deixamos de lado que um dia também fomos o turbilhão de emoções e sentimentos que existem na adolescência.

É como disse Allison Reynolds, personagem de Ally Sheedy, em The Breakfast Club (1985):

Quando você cresce, seu coração morre.

John Hughes foi o diretor que melhor entendeu, escreveu e descreveu a vida de um jovem no cinema. Ele reinventou a juventude nas telonas, retratando-a como ela realmente é: intensa, confusa, contraditória, excitante, frustrante e inesquecível.

Fez isso não apenas com um filme, mas com um arco de obras que definiram grande parte da geração dos anos 80 e 90. Seu universo de nerds e atletas, socialites e desajustados, rebeldes e roqueiros – não se esquecendo de diretores autoritários, professores entediantes e pais ausentes – lançaram tendências na moda, música e linguagem, criando expressões na cultura pop que persistem e ganham vida até os dias de hoje.

Hughes foi o primeiro cineasta a falar com os geeks.

Hughes sempre foi avesso aos holofotes e cultivava a depressão para escrever

Bons amigos, bons filmes

As criações de Hughes apresentavam situações e histórias cotidianas, diálogos rápidos e um roteiro rico, quase sempre envolvendo algum dilema que passamos na adolescência. Mais do que levar para a tela situações corriqueiras e cômicas, Hughes mostrava lições importantes sobre cada uma delas.

Além de cenas engraçadas e personagens familiares, é recorrente nas suas obras uma figura cotidiana para a maioria de nós, que de tão presente sofre o estranho paradigma da invisibilidade: o amigo. As obras de Hughes são uma ode a amizade.

A amizade que engrandece e constrói. Aquela que é crítica, cínica, mas companheira fiel.

Seja em um sábado de castigo, num passeio pela cidade, no meio de um feriado sob nevasca ou mesmo no natal. O amigo esta sempre lá, pronto e disposto a nos ensinar lições valiosas da vida travestidas de aventuras e piadas.

Foi assim com Cameron e Ferris em Ferris Bueller’s Day Off (1986), Neal e Del em Planes, Trains and Automobiles (1987), todo o The Breakfast Club, Gary e Wyatt em Weird Science (1985), Bill e Curly em Curly Sue (1991) e Kevin e o velhinho da pá em em Home Alone (1990).

As melhores trilhas

Além da incrível capacidade de entrar na mente do adolescente e retratar todos os traumas, medos e fraquezas dessa idade, John conseguia ilustrar cenas com uma brilhante esperteza na escolha da trilha sonora. Todos seus principais filmes tiveram pelo menos uma cena imortalizada pela interpretação musical do ator.

É obvio que a primeira cena que vem a cabeça é do maior sucesso comercial do diretor. Ferris Bueller cantando Beatles no centro é um símbolo dos anos 80. Típica cena que você pesquisa volta e meia no Youtube só para matar a saudade.

Leia também  Roger Waters e o seu The Wall Live, completo: nós fomos

Link YouTube | Antes de Beatles ainda tem um chorinho de Wayne Newton

E quem lembra do Allan de Two and a Half Man em Pretty In Pink (1986)? O ator surpreeende a todos – dos personagens aos espectadores – com dublagem hilária do maior clássico de Otis Redding.

Esse Hughes não dirigiu,mas foi o responsável pelo roteiro.

Link YouTube | Quem mais sente um clima meio Alta Fidelidade nessa cena?

A terceira cena ganha destaque justamente pela escolha da trilha sonora. Considerada uma das direções mais densas e perfeitas de John, She’s Having a Baby (1988) possui uma linda sincronia com Kate Bush nessa sequência.

Link YouTube | O clipe de transição clássico do cinema

Bom gosto e sensibilidade para transformar – e criar – a essência de uma cena por meio da trilha sonora.

O cara tinha.

1. Wayne Newton – Danke Shoen
2. Simple Minds – Don’t You (Forget About Me)
3. The Psychedelic Furs – Pretty In Pink
4. Echo & the Bunnymen – Bring on the Dancing Horses
5. New Order – Shellshock
6. Orchestral Manoeuvres In The Dark – If You Leave
7. kate Bush – This Woman’s Work
8. The Beatles – Twist and Shout
9. Yello – Oh Yeah
10. Otis Redding Impression – Try a Little Tenderness 

Oferecimento: Top10Basf

O mundo ficou mais adulto e menos inconsequente na manhã do dia 06 de agosto de 2009. Aos 59 anos, John teve uma súbita parada cardíaca ao caminhar na rua durante uma visita à sua família.

Essas foram as grandes colaborações de Hughes para o cinema; dar cara e voz a uma fase da vida que é tão rápida e importante e expor todo o valor e raridade de um amigo de verdade. Imortalizou a fase da descoberta do eu, da brevidade da adolescência e beleza da juventude, do senso de urgência desmedido de viver a vida como se não houvesse amanhã.

Nos últimos anos, John se retirou do meio hollywoodiano escrevendo esporadicamente roteiros com o pseudônimo de Edmond Dantes, o protagonista do conto de Alexandre Dumas, O Conde de Montecristo, que tem a vida virada do avesso ao ser traído pelo seu melhor amigo.

Amigos próximos afirmam que após a morte do ator e grande amigo John Candy, em 1994, o ímpeto de John em escrever e dirigir filmes foi diminuindo drasticamente, até praticamente desaparecer.

Talvez o choque brutal da perda de um amigo tenha feito John crescer. Assim, deixando-nos órfãos do espírito mais jovem da história cinema.

Eduardo Saigh

Descongelado a 28 anos, brinca de homem de negócios, powerlifter e lutador de braço amador. É mestre de RPG e fã do Queen.