No último dia 06 de junho, o professor João Paulo Barreto — índio que pertence à etnia Tukano — abriu as portas de um sonho antigo: o Bahserikowi’i – Centro de Medicina Indígena da Amazônia.
O centro, que pretende colocar a sabedoria indígena do Alto Rio Negro ao alcance de todos nós, é o primeiro do gênero em um grande centro no País, e é voltado para atender tanto indígenas quanto não-indígenas.
E para quem for ao lugar em busca clichês, não há de encontrar cocar nem pintura corporal. Só conhecimento.
“Nós temos técnicas de tratamento, sobretudo, de duas formas: primeiro pelo Bahsese e pelas plantas medicinais. Bahsese é esse modelo que é acionado dentro de um elemento, pode ser água, tabaco, cigarro, urtiga, no qual o Kumu, ou benzedor, aciona os princípios curativos contidos nos vegetais. Quando ele faz isso, ele não está rezando, ele está evocando esses princípios para curar doenças. Por isso, ele tem que dominar o conhecimento de animais e vegetais”.
João Paulo em entrevista para a Agência Brasil.
Confesso que quando li a descrição das técnicas utilizadas e o título reservado aos especialistas — Kumu — fiquei envergonhado ao perceber que, em meu desconhecimento, esperava encontrar a palavra “pajé” em algum lugar. Foi incômodo constatar que, enquanto a acupuntura já é uma especialidade médica oficialmente reconhecida e tratamentos alternativos, como homeopatia, são uma realidade antiga, os conhecimentos indígenas ainda sejam tão marginalizados no Brasil.
Formado em filosofia, mestre e futuro doutor em Antropologia, João conhece bem essa condição. Em entrevista ao InfoAmazonia, ele contou como alguns casos familiares e o descrédito com que a cultura ocidental trata dos conhecimentos indígenas o motivaram a buscar o conhecimento científico e, mais tarde, a fundar o Centro.
“O primeiro fato foi uma picada de cobra levada por minha sobrinha na nossa aldeia, Santo Domingos, no rio Tiquié, Alto Rio Negro. Quando ela chegou ao hospital após quatro dias, disseram que a região da picada já estava necrosada. Começaram a remover a pele necrosada e depois decidiram amputar a perna. Nós inicialmente fizemos uma proposta: não era preciso amputar porque os kumuã, meu pai, meus tios, diziam que aquilo não era um necrose, que era uma reação entre o veneno da jararaca e o sangue, o que causava aquela coloração. Só que a equipe médica do hospital não tinha disposição de ouvir. Sempre colocava meu pai como uma pessoa que não estudou, que não conhece.
Isso deu uma confusão, porque nós queríamos fazer tratamento conjunto, tanto da medicina como dos conhecimentos. Mas o médico chegou ao extremo de dizer que ele tinha estudado oito anos para poder decidir o futuro da neta de meu pai. Naquele momento eu fiquei com muita raiva, desapontado, angustiado. Mas depois peguei aquilo como motivação. Isso me motivou a mostrar o nosso conhecimento. (…)
Quando meu pai fala com um médico, ele é simplesmente ignorado. Há uma assimetria no diálogo: eles olham e pensam: ‘este aí está falando besteira’. Mas a lógica do meu pai e dos meus tios também não é a do médico. Então, não se senta para dialogar. Foi esta questão que também me motivou para entrar na universidade. O estudo era o caminho para chegar a este diálogo. Hoje eu estou fazendo doutorado. Então a conversa não é mais com o Tukano, a liderança. É doutor com doutor.
Nos primeiros dias de funcionamento, o centro atendeu em média 30 pessoas por dia para tratamentos de questões como dores musculares, feridas que não cicatrizam, coceiras, reumatismo, doenças uterinas, diabetes, colesterol alto, insônia e depressão.
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