O brilho intermitente da luz amarelada na plataforma já seria irritante o suficiente, tremido naquele acende e apaga desgraçado, o olhar que não acostuma, deixando a visão cansada, mas passava quase despercebido com os berros do cachaça que entrou no vagão do trem recém chegado cantando alguma canção popular que falava “eu sou seu bom, seu bom, bombeiro”. 

Fora o barulho desproporcional já nas últimas viagens da noite, dessas que levam geralmente trabalhadores e estudantes muito cansados, o bebum ainda carregava consigo aquele odor nauseabundo, um cítrico ardido que invadia as ventas dos passageiros. Seria uma viagem sofrida. Era dos que gostavam de atenção e de enfrentamento. Recitava sua parte favorita da música olhando na cara das pessoas, como se alimentasse do importuno, da ira alheia. Trazia no rosto uma mancha roxa que pegava pálpebras e a lateral direita do nariz, um hematoma assimétrico e arredondado, evidência forte de um soco levado não há muito. 

Deu duas rodinhas como se quisesse dançar e sentou-se. Com as mãos enfiadas nos bolsos a procura de algo, balbuciava palavrões e filosofia, afirmava com palavras por entre os dentes que só os grandes ficariam, que só quem tem disposição é que vai conseguir. As mãos voltaram vazias de dentro das calças e, pousadas nas coxas, passou a reparar nelas, em suas unhas. Esfregava os polegares em seus respectivos indicadores, movimentos circulares. Os olhos apertados em raiva foram virando duas linhas borradas e as lágrimas começaram a sair. Em seu pranto, a voz embargada e saindo agora aguda da boca, prometia que iria parar de beber, que não iria mais pagar assim de fraco na rua. Chorava com o rosto virado para a janela em um ângulo que as pessoas não pudessem vê-lo naquele estado, mas que ele mesmo não tivesse a possibilidade de se ver no reflexo do vidro.

Passou as costas das mãos na cara para se enxugar,  com menos pressão no olho machucado, e voltou a repetir o refrão que não saía da cabeça. “Eu sou seu bom, seu bom, bombeiro”. Levantou-se junto com seu tom de voz e passou a gritar “bombeiro” dentro do vagão, ainda dentro da melodia, mas reprisando só a palavra final. Mal cheiro, o volume alto da voz e o mantra da música brega foi demais. Do meio do vagão, um homem grande se levantou, largo, um bigode fino e escuro todo crispado em cima da boca raivosa, a testa cheia de linhas, dando um baita contraste com a careca preta, lisa, brilhosa.

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Ao vê-lo de pé, o chapado brecou seus movimentos e analisou toda a massa do homem, percebeu seu desconforto e o apertar das mãos grandes dele. Olhou para fora e percebeu que estavam chegando na estação seguinte, sentiu no tremelicar do vagão a diminuição da velocidade. Botou de novo a atenção no grandão, deu com os ombros e avançou. “Bombeiro, bombeiro, BOMBEIRO”, repetia mais e mais alto enquanto caminhava no corredor e sentiu o calor da pancada contra seu rosto, o mesmo ardor que sentiu no outro olho. Caiu no chão junto com o apito da abertura das portas. O grandalhão saiu.

Ficou jogado no mesmo lugar por mais duas paradas. Levantou-se devagar, a cabeça doendo, o olho em brasas. Queria chorar de novo, mas agora não mais podia. Tinha que sustentar uma pose de quem não liga. De quem enfrenta. Olhou com um olho só para a senhora sentada em frente. “Homem de verdade não foge de briga, né dona?”, perguntou querendo mostrar que estava sorrindo, mas sem que a boca, de fato, sorrisse. 

É. Tem razão.

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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados