Como a gente bem sabe, existe uma vasta gama de coisas pras quais a vida, a escola, a família, os amigos, não preparam a gente. Desde situações práticas em que é impossível preparar de verdade alguém – overbooking de ônibus, fila pra segunda via de documento, aquela hora em que você acha que a panela de pressão vai explodir e você não sabe se espera, se esconde, coloca ela na pia ou liga pras autoridades – até situações emocionais que você só vai entender quando acontecer.

Então, nenhuma teoria ou análise vão realmente facilitar o processo, como términos, perdas, solidão, saudade. E uma dessas situações para as quais não existe bibliografia, não existe workshop, não existe palestra, não existe email do Coursera avisando “Hi, we have recommended courses for you” é ser o vilão de uma história.

Daí você acorda e esse aí é você. E agora?

Primeiro porque a lógica narrativa impede que a gente possa se ver como vilão. Nas nossas histórias pessoais, vividas sempre na primeira pessoa, somos os protagonistas, os personagens principais, e por isso, em teoria, sempre os mocinhos. Familiares e amigos são coadjuvantes, a garota bonitinha da academia é interesse romântico, o colega de trabalho que discute contigo é antagonista, sua avó quando você visita é aquela participação especial da atriz veterana que claramente não tá mais se importando tanto com a trama, tá ali meio que no piloto automático, já disse minhas falas vou lá pros bastidores beber um café e ler meu livro.

E uma coisa bem específica da lógica do mocinho é que ele não erra. Quer dizer, ele até erra, mas os erros são sempre motivados por uma razão maior, sempre levam a um triunfo posterior e a um valioso aprendizado. Os erros do mocinho são sempre justificados de alguma maneira e servem pra ele se reafirmar enquanto protagonista que merece que tudo dê certo. Só quem erra por egoísmo, cobiça, falta de empatia, imbecilidade ou pura incapacidade de ver algo de errado no que está fazendo é ele: o vilão.

Esse é o ponto em que, é claro, as coisas complicam. Isso porque todas as pessoas erram, todas as pessoas vacilam, todas as pessoas dão aquela bola fora, aquela pisada na linha, aquela atitude que você toma mas se precisasse justificar em vinte linhas pra uma comissão avaliadora você apenas ia pedir desculpas e dar uma cabeçada na parede com força moderada. Claro, alguns de nós erram de maneira leve e até parcimoniosa, enquanto outros são vacilões contumazes e conseguem tomar uma decisão moralmente questionável até na hora de escolher o tamanho do pão no Subway, mas todo mundo, no final, está sempre passível de vacilar.

Mas a ideia de que somos mocinhos causa, quando a gente erra feio, quando a gente vacila com outra pessoa, quando a gente magoa alguém, quando a gente se comporta de alguma maneira indesculpável, seja pelo egoísmo, pela desonestidade, pela falta de empatia ou por pura babaquice, um choque cognitvo. Porque sendo mocinhos podemos errar, mas esse erro precisa ter algum motivo, precisa ser fruto de alguma provocação, precisa ser justificado dentro de uma trama que mostra que somos pessoas boas, que o outro mereceu, que temos uma gama de atenuantes e explicações e que tudo vai ficar bem claro no final do filme.

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Os outros personagens ajudam nisso, claro. Pra sua mãe você sempre vai estar certo, aquele filhote de coelhinho realmente devia estar te ameaçando, você agiu em legítima defesa. Pros seus amigos o seu lado sempre vai parecer justificado, não dava pra saber que os itens da loja eram pra venda e alguém ia implicar com você sair com a tevê de tela plana debaixo da camisa. Pros chegados do futebol esse tipo de coisa não importa desde que você continue firme na marcação e sem palhaçadinha na hora de revezar no gol. Tudo tá justificado, tudo tem uma explicação, tudo convenientemente bate com a teoria narrativa do mocinho.

Mas no fundo, bem no fundo, a gente sabe que não. Que tem coisas que a gente fez sem justificativa, que tem coisas que a gente fez por ser idiota, que tem muitas coisas que a gente fez de maneira egoísta e desonesta, e que “não saber o que estava fazendo” ou “não ter feito de propósito” não são atenuantes o bastante quando se trata de magoar outra pessoa ou ser sacana em momentos que você jamais teria o direito.

Todo mundo do mundo nessa foto

Tem situações em que, por mais que você queira se acreditar como mocinho, a verdade é que você foi o vilão da história e tentar disfarçar isso, tentar justificar isso, não aceitar as implicações disso, é não apenas uma falta de respeito com as pessoas que você afetou como uma grande oportunidade de aprendizado que você está jogando fora – a única rota de mocinho que poderia te restar.

Porque dificilmente a gente consegue ser o príncipe ou a princesa encantada, quase nunca a gente consegue ser o super-herói que salva o mundo, tem momentos em que nem o anti-herói pouco convencional mas com um vago resquício de princípios a gente consegue ser. Mas quando no final de uma espécie de “Os suspeitos” pessoal você nota que o tempo todo o Keyser Soze da história era você mesmo, o mínimo de responsabilidade que te cabe é evitar que esse filme complicado vá ter algum dia uma sequência.

João Baldi Jr.

João Baldi Jr. é jornalista, roteirista iniciante e o cara que separa as brigas da turma do deixa disso. Gosta de pão de queijo, futebol, comédia romântica. Não gosta de falsidade, gente que fica parada na porta do metrô, quando molha a barra da calça na poça d'água. Escreve no (<a>www.justwrapped.me/</a>) e discute diariamente os grandes temas - pagode