Sentada no ponto de ônibus da avenida, eu olhava a vida passar: a mulher de vestido nos joelhos com fones de ouvido, a criança que pega, furtivamente, o brinquedo no bolso da mochila e o homem que mastiga um chiclete passado.

Pareço sempre um pouco séria, um pouco brava, ou é o que dizem. Raramente estou. Fico mais é pensando no quanto somos parecidos, apesar de nossos corpos contarem histórias diferentes.

De certa forma, todos choramos quando ralamos o joelho naquele dia, e gostamos de deitar no sofá em tardes de chuva e de comer sorvete depois de tomar um banho pós-praia.

Foi essa reflexão que me veio à mente assim que eu conheci a ideia do projeto Boa Sorte.

É Gabriel Estrëla que, junto com o seu namorado e xará Gabriel Martins, toca o projeto, que trabalha com portadores de HIV e quem caminha ao seu lado, oferecendo assistência em três frentes: arte, informação e acolhimento.

Com o apoio do UNAIDS, estão sendo disponibilizados infográficos e imagens informativas, além de oficinas e palestras sobre o vírus, a doença e gerenciamento de risco nas relações sexuais.

No eixo de acolhimento, a entidade promove testagem junto com o Polo de Prevenção de DST e aids da UnB e também assistência online e presencial a pessoas que receberam diagnóstico positivo e buscam ajuda.

Agora, portadores de HIV e não-portadores estão pra se reunir em um lindo ensaio fotográfico que tem como mote a frase: “Que abraço te dá sorte?”. Juntos, abraçados, entrelaçados, os participantes vão posar pra colocar em cheque os tabus em relação à aids que persistem no tempo, apesar da informação, bem como o tratamento, terem evoluído consideravelmente no país.

O ensaio fotográfico está acontecendo em parceria com a Cia. Fábrica de Teatro e o fotógrafo Daniel Fama.

A ideia foi lançada há cerca de uma semana e deve ser clicada em dezembro, mas eles já contam 200 inscrições voluntárias – sendo 15% delas de soropositivos. Portadores ou não-portadores podem se inscrever aqui (topa?), e não serão identificados quanto à sorologia.

Isso é essencial pro questionamento que Estrëla e o grupo querem levantar: quem tem HIV? Quem não tem?  Isso importa?Eu abraçaria alguém com HIV? Eu abraçaria alguém nu com HIV? Por que sim? Por que não?

A ideia é abrir o papo.

Mas a gente já pode se emocionar com as primeiras fotos: os próprios organizadores posaram pra um ensaio de divulgação.

Vale apreciar.

O HIV hoje, no Brasil

Uma das informações mais importantes pra que comecemos a entender o assunto é a diferença entre portar HIV e se encaixar num quadro de aids.

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A história começa, geralmente, com os resultados de um teste, que busca por anticorpos contra o HIV no sangue e, se o resultado for positivo, outro teste confirmatório deve ser realizado.

A partir daí, o acompanhamento da infecção é necessário, seja na fase assintomática, quando nem sempre se toma remédios, ou durante o quadro de aids, quando o tratamento é feito com antirretrovirais – o objetivo do diagnóstico precoce, no entanto, é que o tratamento seja iniciado cedo para que a infecção não evolua para a aids.

Mas se há trinta anos o diagnóstico era sentença de morte a todos aqueles que não podiam ir aos EUA buscar tratamento, hoje o Brasil é o primeiro país em desenvolvimento a oferecer tratamento público e gratuito a soropositivos.

Além disso, foi no começo desse ano que chegaram aos SUS as primeiras pílulas 3 em 1. A antiga rotina de muitos comprimidos espaçados ao longo do dia, de difícil organização, vem se transformando em algo mais simples já há alguns anos e, agora, se resume a um comprimido antes de dormir.

Mas o tabu ainda está aí. Conversando com um dos organizadores do projeto, o Gabriel Estrëla, ele me chamou atenção pro conflito entre gerações que caminha ao lado dos mitos que sempre ouvimos.

“O conflito intergeracional é um grande desafio para a resposta à epidemia. Isso é visto em várias instâncias: o jovem que não entende sobre gerenciamento de risco, que não conhece formas de ter uma sexualidade saudável e segura além da camisinha e não fala a respeito de HIV/aids e a geração anterior que ainda tem dificuldade de atualizar seus conceitos sobre a doença, que muitas vezes ainda opera pelo medo e não pelo cuidado em busca de uma saúde sexual (que deve incluir o prazer e o conforto, não apenas a questão médica). Isso resulta em um grande problema que é o preconceito. Sobre medicina, o HIV é altamente controlável, mas quando falamos de individuo (de emocional, afetivo, relacional) ele é muito complicado de lidar.”

O projeto vem abrir a roda de conversa sobre nossos sentimentos, percepções e preconceitos em relação ao HIV. E nos lembrar que, apesar das nossas diferenças, todos nós choramos quando ralamos o joelho naquele dia, e gostamos de deitar no sofá em tardes de chuva e de comer sorvete depois de tomar um banho pós-praia.

Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.