Aviso importante: o texto a seguir revela detalhes da trama do filme Gravidade. É SPOILER!
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Não é preciso ser um paranoico adepto de teorias conspiratórias para saber disso. O assunto já ficou notório quando Stanley Kubrick e George Lucas confirmaram que algumas de suas obras foram influenciadas pelas ideias de Joseph Campbell sobre o sentido universal das antigas mitologias.
Por fim, desde que o executivo de Hollywood Christopher Vogler, no período em que trabalhava na Disney, escreveu um memorando para seus roteiristas orientando-os a criarem histórias com base nas mesmas teorias de Joseph Campbell (“memo” esse que acabou inspirando livro), as desconfianças tornaram-se certezas.
Hoje, é um fato: os roteiros dos filmes hollywoodianos possuem, por trás de tramas modernas e personagens verossímeis, mensagens que têm um sentido universal capaz de ser percebido pelo inconsciente dos espectadores. Não estamos falando aqui daquelas bobagens sobre mensagens subliminares, manipulações satânicas ou outras besteiras do estilo.
Trata-se de uma técnica eficiente de fazer negócio, uma forma de ganhar mais dinheiro. Simples assim. E essa manipulação dos roteiros na busca de maximizar os lucros já foi minuciosamente retratada pelo diretor Robert Altman em seu ótimo O Jogador.
É por tal razão que o filme Gravidade, do talentoso Alfonso Cuarón, apesar de aparentemente tratar de um drama humano com contornos de ficção científica, é, na verdade, uma obra anticientífica, medieval e destinada a um público conservador que torce o nariz para a ciência ao mesmo tempo em que volta suas preces para divindades.
O público, enfim, pertencente a uma nação em crise financeira, política e moral.
Já, há décadas, os grandes investidores do cinema americano estão atentos à importância de que os roteiros sejam interpretados pela maior parte do público de forma a se adaptarem à visão de mundo predominante na época em que o filme é produzido: a obra deve traduzir os anseios secretos dos espectadores, refletir sua situação atual.
E o principal público consumidor desses produtores hollywoodianos é típico cidadão médio americano, sendo notório que os Estados Unidos estão em uma guinada das forças conservadoras, sustentadas pela turma do protestantismo fundamentalista do Movimento Tea Party.
Então, nada mais oportuno do que produzirem um filme cuja mensagem subjacente não só se encaixe na visão de mundo dos americanos mais religiosos e conservadores, mas também na visão de grande parte dos adeptos de outras formas de religiosidade tradicional e, de quebra, ainda dando uma força para os cortes de gastos com pesquisas científicas, algo talvez desnecessário, mas que pode ser de alguma utilidade em época de vacas magras.
Que ninguém se engane e suponha que um filme distribuído pela Warner e co-produzido pela empresa britânica que abocanhou a milhardária franquia de Harry Potter é apenas a expressão da livre criatividade de seu diretor.
Não se brinca com um investimento de oitenta milhões de dólares e com a expectativa de faturamento de centenas de outros milhões. Menos ainda se brinca com uma produção que conta com estrelas do porte de George Clooney e Sandra Bullock e com uma gigantesca campanha publicitária em todo o mundo. Não brincar significa saber atender as demandas dos espectadores, mesmo aquelas demandas que o próprio espectador não compreende ter.
Gravidade é anticientífico e religioso na medida certa, ou seja, aquela em que o público não-religioso sequer percebe algo de extraordinário na história, notando apenas um enredo enxuto, linear e bem estruturado, enquanto o público-alvo é atingido bem no meio de seu coração pulsante de fé.
Já no início do filme, somos informados de que a vida não é possível fora da Terra. Em primeira leitura, trata-se apenas de uma informação científica destinada a situar o espectador no contexto do drama. Porém, essa frase representa a essência da filosofia por trás da obra: a vida é incompatível com o espaço e, estar lá fora — explorar o espaço — é uma anormalidade.
Afinal, é um filme que retrata todo o investimento em pesquisa científica e em empreendimentos aeroespaciais como algo destinado a produzir uma desastrosa reação em cadeia, e que apresenta as estações geoestacionárias como sucatas sem tripulação.
“A vida não é possível fora da Terra”, pensa o cidadão médio americano e muitos de seus semelhantes ao redor do mundo, “então não há razão em olharmos para além das fronteiras de do nosso planeta. O que nos interessa o telescópio Hubble e os milhões de dólares investidos em pesquisas espaciais?”
Tudo o que os cientistas parecem fazer, com suas teorias cosmológicas, é lembrar aos religiosos que sua concepção de Deus é demasiada simplória diante da imensidão do universo, e isso é sempre incômodo.
Se não bastasse, temos a protagonista Ryan Stone que, como toda pedra (“stone”), tende a afundar sob o peso da gravidade sem muita resistência do ar: está destinada a voltar e permanecer no chão firme. Ela não é uma astronauta profissional, mas uma médica dedicada a uma específica pesquisa que é de seu interesse. E essa pesquisa, note-se, no fundo não tem nada a ver com a exploração espacial, como é deixado bem claro durante o filme.
Sua busca está relacionada a algo que existe e importa aqui, no planeta Terra, algo que o cidadão médio não só é capaz de compreender mas também de admirar: ela desenvolve estudos científicos na área da saúde humana.
Com isso, conquista-se a simpatia do público mediano. Afinal, não se trata de uma dessas pessoas loucas que vêem algo de interessante naquele local em que a vida humana sequer é possível. A protagonista chega a dizer, inclusive, que “odeia o espaço” (certo, ela diz isso em um momento de pânico, mas a mensagem é corretamente transmitida ao espectador).
A própria trajetória de Ryan, durante o filme inteiro, não é na direção em que iria um cosmonauta que busca, para usar aquela frase famosa da franquia Star Trek, “audaciosamente ir onde nenhum homem jamais esteve”. Sua trajetória, seu objetivo, é justamente na direção contrária: retornar à segurança do planeta Terra.
Não caminhe na direção de seus sonhos e do desconhecido, mas sim fuja de seus medos e fique dentro dos limites do que é compreensível — parece o oposto do que o cinema americano sempre deixou como lição moral de suas histórias, peculiaridade que pode justificar-se ante a atual situação no país.
Mas a cereja do bolo na interpretação proposta neste texto é o surgimento de um astronauta morto, que aparece milagrosamente para impedir que Ryan Stone desista de viver. O sujeito volta da morte e dá à protagonista uma lição de esperança (uma mensagem muito útil aos americanos nesse momento de crise política, moral e econômica), além de uma boa dica sobre como escapar daquele aparente beco sem saída.
Claro, o surgimento do astronauta morto pode ser interpretado, pelo público que não é especialmente religioso, como apenas uma alucinação da personagem, resultante de seu estresse e da gradual privação de oxigênio — há, assim, uma explicação supostamente científica para a cena.
Porém, os realizadores do filme deixaram propositadamente a situação em aberto, para que aquela parcela do público religiosamente fervorosa possa sentir-se segura de que se trata, na verdade, de uma ajuda espiritual confirmadora de sua visão de mundo.
Foi até dada uma dica reforçada: por duas vezes, a protagonista pergunta a seu colega falecido como ele chegou até ali (“how did you get here?”), e ele responde exatamente da mesma forma por duas vezes: “it’s a hell of a history” (“é uma história infernal”, em uma tradução quase literal).
Que sugestão rica de significado para um cristão ou espírita! É uma excelente resposta para um um espírito que atravessou mundos ou dimensões, quem sabe “infernais”, para, talvez, redimir a própria alma. O detalhe é sutil na medida certa: passa a mensagem para quem quiser capturar essa mensagem, mas deixa livre aqueles que não estão preocupados especificamente com esse tema.
Concluindo e repetindo, um bom filme americano, para ser digno da enxurrada de dinheiro dos investidores, precisa ser capaz de puxar certas “cordas” do público-alvo. E o público que Gravity tenta atrair não é uma minoria nerd que curte ficção científica, mas a maioria de cidadãos médios dos Estados Unidos e da Europa, gente que está vivenciando uma grave crise econômica e anda muito propensa a simpatizar com o conservadorismo religioso.
Dito isso, o produto é impecável.
O filme, porém, falha exatamente na medida em que é um sucesso enquanto produto. Seus clientes são pessoas que precisam ver, nos cinemas, algo que corresponda a sua concepção religiosa do mundo. A visão medieval, que restringe nossos horizontes aos limites do que é conhecido e familiar, também limita o enxuto roteiro de Alfonso Cuarón.
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