Quando comparado com Tolkien [leia nosso “J. R. R. Tolkien | Homens que você deveria conhecer”], George Raymond Richard Martin, o autor da saga épica de fantasia “As Crônicas de Gelo e Fogo”, já possui resposta pronta.

“Tolkien foi um arquiteto. Sou apenas um jardineiro.”

Removidas a humildade e a reverência ao criador da Terra-Média, sobra um aspecto fundamental sobre a obra de Martin que geralmente passa por cima da cabeça de alguns leitores. O mundo monumental imaginado pelo autor americano – que em 2013 completa 65 anos – não surgiu a partir de uma mitologia base ou idiomas fictícios.

Westeros não é um mundo criado a rigor para que línguas fossem faladas nele, à maneira como Tolkien desenhou seu universo. Westeros começou com uma pequena, minúscula, semente. Uma cena. O autor nunca teve uma ideia de onde essa cena o levaria. Foi apenas ao longo do caminho que descobriu os personagens e seus destinos.

Antes de voltar à semente de Westeros, um pouco de contexto.

Cara de bom velhinho, mas cheio de tramas ardilosas na cabeça

Quando o Brasil passava pelo tenebroso inverno de 1991 – o calor tropical tupiniquim esmaecido pela instabilidade econômica que assolava nossa jovem república –, Martin cultivava jardins que, até então, lhe rendiam mais frutos. Escrevia ficção científica com algum sucesso, já havia embolsado prêmios Hugo – uma espécie de Oscar do gênero – e transitava entre projetos para Hollywood e para a televisão. Estava, contudo, absolutamente frustrado.

Nenhuma de suas grandes ideias conseguia terreno fértil nas telas americanas, disse em entrevista a revista Entertainment Weekly. A decepção com o jardim cinematográfico o levou de volta à prosa:

“Eu não conseguia ter cenas grandiosas, precisava escolher entre ter cavalos ou filmagens no Stonehenge. Nunca os dois. Decidi que contaria histórias do tamanho que eu quisesse.”

Foi então, no primeiro ano da década de 1990, que Martin encontrou a semente e o adubo que precisava para começar o seu jardim, alheio à grandiosidade que um dia ele poderia alcançar. Entre goles de cervejas, partidas de futebol americano – Martin é fã dos Giants – e uma mania obsessiva de criar árvores genealógicas de famílias medievais fictícias, o autor escrevia Avalon, uma história de ficção científica.

Teve uma visão sobre o primeiro capítulo das crônicas. “Um menino, Bran, assistia a um homem sendo decapitado e em seguida encontrava os filhotes de lobo gigante na neve”, disse em 1996, logo após o lançamento de A Guerra dos Tronos. “Imediatamente percebi que Avalon seria engavetado e a fantasia me consumiu completamente. Quando comecei a desenhar mapas, eu sabia que era um caminho sem volta.”

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Otimista com o novo jardim que começara a cultivar, Martin fez planos para concluí-lo em 1998:

“Se eu conseguir manter o planejamento, devo terminar As Crônicas de Gelo e Fogo ao fim de 1998. Mas não esperem de pé. Esses livros são três vezes maiores que as histórias comuns. Estou aprendendo do jeito difícil que se leva muito tempo para escrevê-los.”

A saga seria dividida em três volumes e editoras o cortejavam agressivamente, tendo em vista a fama que já havia conquistado com seus trabalhos de ficção científica, na TV e a promessa comercial que o gênero de fantasia oferecia naquele momento. Não demorou muito tempo, no entanto, para Martin perceber que havia errado – e muito – ao estimar que sua história terminaria em apenas três volumes.

Quando já escrevia o quarto, originalmente chamado A Dance With Dragons, percebeu que 1500 páginas de manuscrito não eram suficientes para contar metade do que queria. Decidiu dividir o livro ao meio. O jardim de Martin estava ficando grande demais, selvagem demais.

Ao publicar a primeira metade sob o título de A Feast for Crows em 2005, cometeu mais um erro de estimativa ao afirmar, com a melhor das intenções, que terminaria a segunda parte em menos de um ano. A segunda parte já estava escrita pela metade. Em vez disso, fãs tiveram que esperar seis longos anos. Um trabalho de cultivo que se mostrou complexo demais para apenas um jardineiro. Martin encontrou vários obstáculos ao tentar fazer sentido dois livros que foram concebidos para ser apenas um.

Uma das razões que explicam a dificuldade de Martin é a proliferação de elementos da trama. As Crônicas de Gelo e Fogo acontecem ao longo de vários anos em um continente do tamanho da América do Sul. Cada capítulo é narrado em terceira pessoa, a partir do ponto de vista de um único personagem.

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“O primeiro livro teve oito pontos de vista, mas O Festim dos Corvos elevou o número total para dezessete, cada um numa localidade diferente e envolvido em uma trama complexa – lutando em guerras, viajando pelo continente ou conspirando para tomar o trono”, disse o autor à revista New Yorker.

Alinhar tantas cronologias é algo que levou Martin à exaustão. “Preciso me perguntar: ‘Quanto tempo vai levar para que esse personagem saia daqui e vá até ali de navio? Enquanto isso, o que aconteceu no livro anterior?

Se ele vai demorar tanto, mas no outro livro eu disse que ele já chegou, daí estou em apuros'”, revelou. “Esse tipo de coisa me leva à loucura”, disse. Em seu blog pessoal chegou a desabafar que a linha do tempo de A Dance With Dragons, quinto livro, era uma “encheção de saco e meia”. “Ela pode muito bem fazer sua cabeça explodir. Foi o que aconteceu com a minha.”

As Crônicas de Gelo e Fogo

O jardim de Martin segue crescendo e prosperando. Segundo estimativas de pessoas que trabalham para o autor há mais de mil personagens citados em . O trabalho já rendeu jogos de tabuleiro, cartas, livros adicionais e uma série de TV, produzida pela HBO.

Hoje, Martin escreve em uma pequena torre que construiu em frente à sua casa, no estado de Novo México, nos EUA. Uma recriação medieval, com um vitral que exibe os brasões das quatro principais famílias de Westeros e prateleiras que guardam seus livros prediletos, miniaturas de cavaleiros e uma vasta coleção de quadrinhos. Um cenário construído tijolo por tijolo, semente por semente.

O jardim de Martin cresceu tanto que muitos fãs o confundem com um universo meticulosamente planejado e arquitetado. Ao se depararem com tantas informações, tantos detalhes, alguns querem um nível de detalhe que simplesmente não existe.

“Pessoas me escrevem dizendo que são fascinados pelos idiomas em minha história. ‘Gostaria de estudar Valyrian'”, uma das línguas presentes na história de Martin. “‘Poderia me enviar um glossário, um dicionário e a sintaxe?’ Tenho sempre que responder, ‘Inventei sete palavras em Valyrian.'”

O Senhor dos Aneis

Contudo, Martin também ensaia atividades típicas de um arquiteto literário. “Tolkien foi meu grande modelo para muito do que escrevo”, disse. “Se você considerar , ele começa com um foco restrito e todos os personagens estão juntos. Ao fim do primeiro livro a Sociedade se divide e todos têm aventuras diferentes. Fiz a mesma coisa.

Todos estão em Winterfell no início, exceto a Dany. Eles então se dividem em grupos e esses grupos também se dividem. A intenção era separá-los e aos poucos reuni-los de volta. Encontrar o ponto onde o retorno se inicia é um dos problemas que me gera mais dificuldade”, disse Martin.

De posse de suas simples ferramentas – Martin usa um computador que roda apenas DOS e escreve seus textos em WordStar 4.0 – o autor segue o árduo caminho para terminar a série de, até então, sete livros. Enquanto fãs aproveitam a estreia da terceira temporada de Game of Thrones, leitores aguardam pacientemente o lançamento do sexto volume, Winds of Winter, previsto para 2014.

Caso isso não aconteça – o que, convenhamos, é bem possível – Martin sugere visitas a outros mundos, como The Accursed Kings (Os Reis Malditos), série de sete livros considerada “A Guerra dos Tronos” original.

No entanto, temos que ser realistas. Martin deve atrasar com seus compromissos. Ele não vai conseguir fechar as crônicas no tempo que planejou inicialmente. Mas tudo bem. Martin é apenas um jardineiro. Talvez um dos maiores que já existiram no gênero de ficção.

Se o que nos aguarda são paisagens dignas de um Roberto Burle Marx da fantasia, esperar valerá a pena.

Marco Túlio Pires

Coordenador da Escola de Dados e Assessor de Inovação e Transparência na Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado São Paulo. Jornalista, é programador interessado na interseção entre ciência da computação, jornalismo, novas plataformas e governo aberto. Escreve de vez em quando em <a>Bitcount</a>."