Pare qualquer coisa que esteja fazendo agora. Só não apague o cigarro porque a realidade é dura e agora você está só, sentado ou deitado. Deixo claro que este post não foi a próxima edição dos homens que você deveria conhecer apenas por nosso protagonista ter sido pego por sua própria armadilha. Seu nome não é bem visto, mas sem dúvidas é um remédio e tanto para as longas conversas especulativas sobre o talento de “Fellinis” e “Pasolinis”.
Gaspar Noé. É assim, de forma direta e obscena que um baixinho calvo franco-argentino estampa o anti-kitsch na tela e diz: “ecce homo!”
Os rostos anônimos, confusos e azulados pelo refletor nem precisariam chegar a Irreversível para deixar a sala de cinema, como ocorreu em Cannes no ano de 2002.
O alter-ego de Noé aparece logo em suas primeiras produções baratas. Desde o curta Sodomites até Sozinho Contra Todos, espantosamente ele parece a temida previsão de Nietzsche ao abraçar aos prantos um cavalo açoitado pelo cocheiro ao sair de seu apartamento em Turim para uma caminhada em 1889, período de seu divórcio com a humanidade.
O personagem de Noé se encontra na base do parasitismo equino humano, como sugerido bem depois por Kundera. Tudo o que deseja durante a trama é ter seu bom bife, o seu direito sobre a materia e mesmo seu desejo laboral está intimamente ligado à doce carne de cavalo, muito apreciada na França e em diversos países europeus. Há sempre uma sensação de nudez durante os longos monólogos de um açougueiro: como somos parasitas das vacas, ou machina animata, a razão subsiste por meio da posse. Esta ideia inclusive foi claramente adotada pelo brasileiro Heitor Dhalia onze anos depois.
Para Descartes, animal era sinônimo de um sistema natural animado sem sentimentos, sem possibilidades interativas, um recurso do homem forte, o homem que ao mesmo tempo cria e aprende sua moral a favor da carência e a impõe pela força da época. É mais ou menos como eu classificaria hoje o que se conhece por Cultura Organizacional.
A temática central das obras de Noé é simples. A vida em sociedade é um túnel impossível de ser compartilhado. Estamos sós. Vamos ficando cada vez mais sós, em nosso corpo, em nossas missões, objetivos, ambições e posses. O diretor diz sim o tempo todo , o sim que evitamos em cada descarga da privada, na assunção de sermos a extensão ideológica de nossos pais; ele choca sem culpa, pois parece entender que a possibilidade não é prejudicial, mas o próprio exercício do conhecimento.
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Uma pessoa aparentemente serena de tom calmo e bigode provinciano, em grande contraste à violência de suas pesadas verdades, Gaspar Noé ultrapassa as formas do cinema. Só vamos saber se seu alter-ego comeu sua filha – sugerido no final de Sozinho Contra Todos – na abertura do repudiado Irreversível, onde o açougueiro desabafa de cuecas com um estranho. A trama é uma montanha-russa emocional, garantindo homenagens a Kubrick enquanto condena uma Mônica Bellucci madura e grávida a quase onze minutos de estupro anal sem cortes.
O existencialismo impressionista de um sujeito que conta a mesma história há mais de dez anos é aliviado somente por uma perspectiva, que é a que resta a quem se sujeita àquilo que nega, a um emprego das 9h às 18h, às expectativas obsessivas, à longa escalada para o sucesso: “o tempo destrói tudo”.
Uma mensagem corajosamente positiva em meio aos “seja o primeiro a comentar”, “escreva aqui o que está pensando agora” e tantos outros imperativos já familiares (inofensivos?). Um livro jamais trouxe um “leia-me”, um telefone “fala-me” ou uma mulher “foda-me”.
Somente tenho uma vida para poder saber se o tempo realmente destrói tudo, mas por enquanto ele vem alavancando a carreira de um mindfucker genuíno. Um tiozinho bem humorado que ainda se interessa pela expressão humana até o dia do grande sim. Quem o assiste se recorda de que um filme pode ser escrito, dirigido e também apreciado por aquele que quis lhe tirar da sensação abstrata.
Filmes errantemente masculinos, machos até a loucura, até o clímax da violência sobre valores e sobre a carne: no terceiro filme do diretor até mesmo um extintor de incêndio, algo voltado para a segurança e resgate, se torna uma arma bruta, que traz em sua simplicidade uma aflição medieval ao esmagar repetidas vezes uma cabeça humana. Mecum omnes plangite.
Ironicamente, Gaspar Noé já chegou a levar cinco anos para produzir um filme, mais que o dobro deste tempo para alcançar reconhecimento internacional, e seu último filme (Enter The Void) foi escrito no século passado (2000).
Não gosto da palavra tempo. Ela atribui a esse fenômeno uma ilusão perigosa que parece existir de forma independente do outro ser, do outro olhar, sendo da mesma qualidade do que entendemos como países, estados e nações, ou o quão a sério levamos nossa imaginação. Para Noé não basta a merda estar no chão: ela tem que ser vista, pisoteada, desintegrada de sua composição inicial assim que o tempo destruir tudo.
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