Uma das frases de doutrinação que a gente mais costuma ouvir desde moleque, junto com “Sempre respeite os mais velhos”, “Se não sabe consertar não quebra” e “Essa aqui é só uma amiga do papai e se não contar nada pra sua mãe vai ganhar um videogame novo”, é o clássico “Futebol, religião e política não se discute”.

Essa frase parte da premissa de que esses três assuntos são tão polêmicos, tão tensos, tão complexos, que a simples tentativa de uma troca de opiniões sobre eles vai imediatamente drenar toda a racionalidade do ambiente e transformar um bate papo casual no que poderia ser descrito como uma briga de facas num pub viking em noite de UFC. Em suma, despertar aquilo que Roberto Jefferson chamaria de “nossos instintos mais primitivos”.

Existe nisso uma face de verdade que poucos de nós podem negar. Na eleição passada qualquer um que tenha um Twitter conseguiu notar o quão absurdas as discussões políticas podem se tornar num ambiente virtual mesmo entre amigos. Todos sabemos o quão delicada é uma questão como a da religião, que lida diretamente com a visão de universo de uma pessoa e mesmo eu, que devo ser um dos caras mais pacatos do mundo, posso ficar significativamente exasperado quando o assunto é o maldito campeonato brasileiro de 1987. Sério, eu admito que fiquei nervoso apenas digitando sobre isso. Acho que até tive um pesadelo com a taça de bolinhas, na boa.

Tudo começou porque ele perguntou em quem o outro votou pra vereador

A invenção da não-discutibilidade

Mas a verdade é que com o passar do tempo não apenas esse tipo de conceito sobre “não-discutibilidade” de certos assuntos foi sendo introjetado pelas pessoas como o grupo dos tópicos não-discutíveis foi crescendo cada vez mais, numa proporção que desconfio em breve vai começar a complicar a vida das pessoas na hora de bater papo num bar.

Vivemos numa era em que você ouve pessoas dizendo coisas como “Carro não se discute”, “Lobão não se discute”, “BBB não se discute”, tendência que possivelmente vai nos levar a uma era em que você vai comentar com o seu amigo que o bolinho de bacalhau não está tão bom e ele vai replicar com um “Porra, bolinho de bacalhau não se discute, tá querendo que isso aqui descambe pra porradaria, bróder?”.

Por que discutir se eu posso trollar, certo?

Com o tempo a maior parte de nós acabou se desacostumando a discutir. Não discutir no sentido de bater boca, trollar, gritar, trocar ofensas e ficar assustando as crianças pra que elas precisem daquelas consultas caras na psicóloga infantil, mas sim no sentido de trocar ideias, ouvir, começar uma conversa já sabendo que o outro tem uma opinião diferente, possivelmente inversa, mas que ela é tão válida e tão importante quanto a nossa, porque se ele pensa assim ele tem algum motivo.

Discutir é ao mesmo tempo uma chance pra dar a sua opinião e uma oportunidade pra ouvir a do outro, tentar entender como ele chegou ali.

Quando dizemos que o assunto a ou b “não se discute”, o que fazemos é basicamente admitir que não apenas não queremos conhecer uma perspectiva diferente como o simples gesto de ouvir essa visão é pra nós ofensivo, absurdo e algo que provavelmente vai descambar pra gritaria e pra porrada com garfinhos de plástico.

E porque fazemos isso? Porque é fácil, claro. Se eu sou ateu é sempre mais fácil apenas ignorar qualquer argumento religioso do que tentar ouvir e entender porque aquela pessoa pensa e sente daquela forma. Se eu sou de esquerda é muito mais fácil taxar alguém de direita de reacionário matador de pobres do que buscar qual o tipo de base teórica que gera aquela posição. Se eu sou flamenguista é muito mais fácil chamar o Sport de time pequeno do que tentar entender a zona que foi aquele ano de 1987 e buscar o que aconteceu e não o que eu gostaria que tivesse acontecido.

“Galera, agora vamos sentar todo mundo e discutir esse lance de 87 com calma, peraí.”

E qual o grande resultado disso? Deixamos de pensar. Afinal, o que te obriga a embasar sua opinião, a ter argumentos lógicos, a justificar seus pontos de vista, é o confronto com a opinião alheia, é o embate sadio (e sem objetos perfurocortantes) entre visões de mundo.

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É exatamente quando eu falo com alguém de direita que eu entendo mais claramente porque sou de esquerda, é exatamente quando eu ouço minha avó falando sobre religião que eu noto o que ali me gera discordância e o que não gera, é exatamente quando eu falo com um sãopaulino sobre a taça de bolinhas que eu entendo porque ele se sente tão no direito de ter aquela porcaria de troféu quanto eu.

E isso se reflete nas coisas, nas instituições, na sociedade. Não conseguimos discutir política sem que alguém acabe mayarapetruzando a conversa e por isso pessoas votam com argumentos tão contundentes quanto “Acho que ela é sapatão” ou “Não voto nele porque ele tem cara de vampiro” e temos um cenário político do qual não nos orgulhamos.

Não discutimos religião e por isso questões como padres pedófilos ou pastores que lucram tanto quanto megaempresários acabam sendo jogadas pra debaixo do pano em nome de uma “tolerância religiosa” que é muito mais medo do rumo que a conversar pode levar do que tolerância em si.

Não discutimos futebol e temos que ficar separados por grades nos estádios pra que uma torcida não ataque a outra com pedaços de tijolo ou porretes de madeira. Porque afinal, não dá pra discutir esses assuntos, todo mundo sabe. “Se discutir vai dar merda.”

Tudo é passível de discussão (até isso de tudo ser passível de discussão)

A verdade é que não deve existir assunto que não possa ser discutido, se nós soubermos discutir. Não porque a constituição garante, não porque liberdade de expressão é sagrada, não porque vivemos um novo começo de era com gente fina, elegante e sincera com a habilidade pra dizer mais sim do que não, mas porque essa troca de opiniões é mais do que um sinal de civilização, é um mecanismo de evolução em termos sociais.

É apenas com o choque de opiniões, com a troca de ideias, com a capacidade de ouvir o diferente sem reagir com “Meh”, “Mimimi” ou “Ah, não vamos falar sobre isso”, que conseguimos sair do lugar comum e expandir a nossa visão além do que a nossa cabeça consegue pensar sozinha, gerando mudança.

É conversando que as pessoas se entendem. Eu apenas adicionaria cerveja e um petisco. Torresmo, quem sabe?

Não que seja um exercício fácil, porque nunca é. Primeiro porque nem todo mundo sabe expressar a sua opinião de forma respeitosa ou argumentar fora do campo do “Você está errado porque eu estou certo”, depois porque é incômodo expor suas convicções à prova e ver que elas podem sim estar erradas e terceiro porque, bem, em diversos momentos dá mesmo vontade de dar porrada em alguém, não vamos negar.

Mas quando praticado com freqüência acaba se tornando um hábito e te permite pensar com mais clareza e ter mais convicção nas coisas que você diz e faz, além de te ensinar a ter um respeito bem maior pelo outro e pela opinião dele, ainda que ela seja diferente da sua, baseada em conceitos dos quais você discorda e possivelmente refutada por qualquer traço básico de realidade, só valendo para um universo em 2D no qual girafas seriam as criaturas predominantes na Terra.

Por isso precisamos discutir. Seja futebol, política, religião, carro, o lance do Lobão com o Restart, o bolinho de bacalhau ou quem era aquela mulher que estava saindo do motel com o meu pai naquele dia, vai ser exatamente a discussão civilizada, sadia e inteligente que vai nos levar a algum lugar, se formos mesmo chegar a algum lugar.

E claro, apenas a título de informação, acho que a taça das bolinhas deveria mesmo ficar com o meu Flamengo. Mas a gente sempre pode discutir isso.

João Baldi Jr.

João Baldi Jr. é jornalista, roteirista iniciante e o cara que separa as brigas da turma do deixa disso. Gosta de pão de queijo, futebol, comédia romântica. Não gosta de falsidade, gente que fica parada na porta do metrô, quando molha a barra da calça na poça d'água. Escreve no (<a>www.justwrapped.me/</a>) e discute diariamente os grandes temas - pagode