“Preto parado é suspeito. Preto correndo é bandido”. Eu moro na periferia de São Paulo e cresci ouvindo a primeira frase desse texto como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Na rua, nas abordagens policiais, sempre percebi que eu era “errado”. Enquanto eu era revistado, questionado e tratado na base do grito, outros amigos que não eram da minha cor, recebiam outro tratamento. Os meus colegas sempre repetiam que aquilo era assim mesmo. Era só aceitar.
Em casa, fui ensinado que não podia sair sem RG. Se saísse de casa sem, mesmo que fosse para ir na padaria da esquina, eu deveria voltar para buscar. “A polícia tem que saber quem é você”, ouvia sempre. Mas levar documento nunca impediu que eu, e meus amigos negros fôssemos tratados como suspeitos ou bandidos no bairro, levando enquadro com xingamentos na frente de todo mundo.
Quis compartilhar essas situações, pelas quais eu já passei, para começar a falar sobre o caso do Rennan da Penha. O DJ foi preso em abril deste ano. Ele foi condenado em segunda instância pela Justiça do Rio de Janeiro a seis anos e oito meses de prisão pelo crime de associação ao tráfico de drogas.
Segundo informações da polícia, Rennan era o responsável por avisar quando policiais estivessem subindo o morro. As provas para isso seriam mensagens no Whatsapp. Outro motivo seriam as músicas do DJ, que faziam apologia ao uso de drogas e ao Baile da Penha, que ele mesmo criou.
Na época do veredito, a OAB, questionou a prisão de Rennan e disse que a condenação seria uma tentativa de criminalizar o funk. Quando a OAB diz ‘criminalizar’, ela fala no sentido de minar as possibilidades do funk acontecer, como por exemplo, prender quem organiza festas nas quais o gênero toca. A entidade também declarou preocupação com o uso do sistema da Justiça criminal contra setores marginalizados da sociedade.
Rennan foi acusado 'de olheiro, que dava informações por onde a polícia passava naquela comunidade'. Ele se defende dizendo que foi um 'mal-entendido' devido ao jeito como todo mundo se fala na comunidade. "Toda vez que tem uma operação todos os moradores se comunicam, entendeu? Colocaram isso como se fosse atividade do tráfico".
Pois bem, foi o Rennan da Penha quem criou o “Baile da Gaiola” – hoje, o maior baile funk do Rio de Janeiro. Foi de lá que saiu a batida de funk 150, hoje é a mais ouvida no Brasil. A Vila Cruzeiro, Complexo da Penha, onde acontece o baile, já chegou a receber mais de 20 mil pessoas no ano passado. Esta mesma edição durou 16h. 16h de festa em uma favela.
Aqui tem outra coisa importante. Como moradores de favelas e periferias, sabemos o quanto não tem equipamento público a nossa disposição. No meu bairro não tem cinema, teatro ou outros equipamentos culturais que eu gostaria de frequentar. A certeza é que todo domingo tem fluxo na rua de cima da minha casa. É para lá que vão meus amigos. A atividade cultural mais potente não é organizada pelos governantes eleitos por mim, mas pelo meu vizinho, de 24 anos.
Em outubro, Rennan foi um dos vencedores do Prêmio Multishow. Um time de especialistas elegeu a música "Hoje Eu Vou Parar na Gaiola", de MC Livinho com o DJ, como a "Canção do Ano".
No dia 7 deste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu derrubar a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância. No dia 11, a defesa de Rennan formalizou um pedido pela liberação do DJ, com base na decisão do STF. Os magistrados entenderam que um réu só pode cumprir pena depois que esgotar todos os recursos na Justiça.
A gente morre de qualquer jeito. Nesta semana, estava conversando com um colega sobre como a gente, jovens negros, não escapamos da morte mesmo quando a gente "quer ser alguém". Rennan não foi pego com droga, não roubou ninguém e não matou, mas parece que o crime foi nascer negro em um país que os jovens morrem nas mãos da polícia. O crime de Rennan, talvez, tenha sido tentar fugir da polícia que vê a gente como alvo.
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Aqui, eu pensei em muitas músicas que poderiam caber, mas acho que Caravanas, do Chico Buarque fala bem da situação.
O compositor fala da herança escravagista no Brasil, usando como exemplo episódios em que alguns ônibus com meninos da favela foram proibidos pela polícia de chegarem na praia. O argumento era de que os garotos fariam arrastões na areia. Então, qual foi a solução do estado? Melhor proibir a ida até lá, melhor que ficassem na favela mesmo…
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