Na primeira vez em que um pau me foi enfiado goela abaixo – figurativamente falando – eu tinha apenas doze anos. Doze.

 

Fui estuprada!
Fui estuprada!

Voltava da escola pra casa todos os dias, de ônibus. Naquele dia não foi diferente. E, mesmo assim, foi totalmente diferente. Porque, naquele dia, sentado do meu lado, estava um senhor que achou que seria uma excelente ideia colocar o pau pra fora da calça e se exibir pra uma criança.

Aquele foi o primeiro dia em que me senti um objeto. Enojada e impotente.

Da segunda em diante, parei de contar. Já apertaram minha bunda, já apertaram meus peitos, já puxaram meu cabelo, já assobiaram e disseram grosserias que, certamente, não diriam às suas santas mãezinhas.

Há quase dez anos, contudo, uma dessas situações marcou a minha vida. Há quase dez anos fui estuprada.

Não fui estuprada por um estranho. Sei o nome e sobrenome do meu estuprador, e há dez anos sabia também o seu endereço, onde trabalhava, o que fazia, onde tinha estudado, quem eram seus amigos.

Fui estuprada por um amigo, num encontro.

Não estávamos muito bêbados. Não, eu não estava usando roupas provocativas. Sim, eu disse que não queria. Aliás, nada disso explicaria ou justificaria o que aconteceu, mas acho bom ressaltar pelo caráter educativo do relato: não, as mulheres nunca estão a salvo.

Como em algumas vezes anteriores, eu e meu amigo tivemos um “date”, saímos juntos pra jantar, conversamos, rimos. Fomos pro meu apartamento, depois. Tomamos um drink qualquer. Eu queria estar com ele, eu estava atraída, eu estava a fim.

Mas, de repente, me vi forçada a uma situação de violência e agressão da qual não queria participar. Enojada e impotente, como aos doze anos. Dizendo, ou melhor, gritando que não, mas não tendo força suficiente para me desvencilhar de um corpo adulto muito maior e mais forte do que o meu.

Sei que é chocante revelar publicamente um estupro e pensei muito antes de escrever esse texto. Nem mesmo as pessoas mais próximas sabem do que me aconteceu.

Mas o estupro em si não é o meu ponto mais importante. A cada doze segundos – SEGUNDOS – uma mulher é estuprada no Brasil. A cada quinze segundos uma mulher é espancada por um homem, também no Brasil. Aproximadamente uma em cada três mulheres sexualmente ativas já sofreu agressão física ou sexual por um parceiro. Uma em cada 3 mulheres NO PLANETA já foram espancadas, estupradas ou submetidas a outro tipo de abuso. De cada cinco mulheres no mundo, uma será vítima ou sofrerá uma tentativa de estupro até o fim da sua vida.

O meu estupro é só mais um em UM BILHÃO no planeta. Sim, esse número é real. Um bilhão.

O importante é como eu, depois do estupro, relutei em acreditar e admitir que fui estuprada. É como defendi meu estuprador para o amigo que me socorreu, dizendo que ele provavelmente não tinha entendido que eu não queria. É como passei um longo tempo achando que, apesar de todos os meus gritos, resistência física e de todo o sangue que ficou na roupa de cama, aquilo tudo podia ter sido apenas um mal-entendido.

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O importante é que, depois do estupro, ainda falei amigavelmente com meu estuprador, e ainda tive pena dele.

O importante é quantos anos demorou pra que eu finalmente admitisse pra mim mesma – e só pra mim, claro – que eu tinha sim sido estuprada. E como, mesmo assim, optei por não contar isso pra ninguém, por não falar no assunto, por não alertar outras mulheres para o perigo que correm todos os dias ao simplesmente existirem.

O estupro em si foi só mais um, mas a minha ATITUDE – infelizmente, também muito comum – é o que permite que a cada doze segundos uma mulher seja estuprada no Brasil.

Esse ano, me vi novamente numa situação em que me senti impotente e, por alguns minutos, não tive força física suficiente para resistir a algo que eu não queria que acontecesse com o meu corpo. Não era uma tentativa de estupro, mas a sensação de impotência me remeteu automaticamente a dez anos atrás. Das entranhas, me veio uma força desconhecida e consegui dizer NÃO. Consegui reaver a posse do meu próprio corpo, e impedir que alguém fizesse comigo algo que eu não queria.

E, pela primeira vez em dez anos, chorei pelo meu estupro. Me permiti sentir pena de mim pelo que aconteceu. Me permiti sentir raiva do meu estuprador. Me permiti chorar.

Mas chorei também de orgulho pela minha recém-adquirida coragem, por ter conseguido me defender, me impor, cuidar do meu corpo, mandar no meu corpo, retomar das mãos do outro o meu direito sobre mim mesma.

Parece uma coisa simples que uma pessoa tenha direito sobre seu próprio corpo, mas não é simples para as mulheres. E as mulheres precisam falar mais sobre isso, se abrir, contar suas histórias, ter coragem de se expor. Não só sobre estupro, mas mão na bunda, mão nos peitos, puxões de cabelo, paus pra fora da calça, agressões verbais. Me arrisco a dizer que TODA mulher que conheço já passou por pelo menos uma situação de abuso ou violência sexual (sim, tudo isso É violência!). E os homens precisam ouvir, saber, perceber as diferenças, compreender as dificuldades que, ainda hoje, as mulheres sofrem.

A propósito do 11 de setembro, lembro que na época do atentado uma das coisas que mais se falava era que eram tantos passageiros contra apenas uns poucos terroristas que, se tivessem se unido, o desfecho poderia ter sido tão diferente. Uma tragédia poderia ter sido evitada.

Demorei dez anos pra admitir e chorar pelo meu estupro. Demorei dez anos pra ter coragem de me abrir e me expor. Não esperem isso tudo. Contem suas histórias. Somos mais frágeis, sim, mas somos muitas. Juntas, podemos mudar tudo.

* * *

As imagens que ilustram esse texto são do pintor austríaco Egon Schiele.

Paula Abreu

Paula Abreu é escritora e mãe do Davi, com quem adora assistir desenhos e ir à praia. Escreve no site <a>Escolha sua Vida</a> e no Facebook em <a href="http://www.facebook.com/MyBetterLife" title="My Better Life">My Better Life.</a>."