Em meio aos arranha-céus de São Paulo, eu cresci em um bairro quase interiorano. Todos mundo se conhecia ou era parente de alguém. O Seu Mário, mecânico, era pai do leiteiro e da veterinária. A venda do Seu Dionízio era boa pra miojo e industrializados, enquanto a do Seu Alexandre, era melhor pra verduras, legumes e docinhos. Na hora do almoço meu pai passava com a caminhonete de gás salvando as donas de casa que ficaram sem fogo enquanto faziam o arroz.
Hoje, quando eu volto por lá, as coisas estão mudadas. Os condomínios tomaram conta. Casa foram demolidas, algumas viraram estacionamento, outras se tornaram restaurantes estilizados. Muitos faleceram – Seu Mario, Seu Alexandre – outros foram empurrados para fora do bairro. Costureira é coisa que não se acha mais. A padaria e a venda viraram grandes negócios impessoais.
Quando eu topei com o trabalho de Cristiano Burmester, percebi que suas fotos são registros necessários que evidenciam mudanças econômicas e sociais, além de dar voz e visibilidade para aqueles que resistem trabalhando nestas profissões. Resolvi entrevistá-lo e trago aqui o trabalho dele e os frutos da nossa conversa.
Economista de formação, Cristiano Burmester sempre trabalhou como fotógrafo e, atualmente, também dá aulas como professor universitário na PUC SP. Na última década, notando o desaparecimento de estalecimentos e serviços de bairro, criou o projeto fotográfico Invisíveis para retratar estas profissões.
“Acho que nos últimos anos, pra mim, ficou muito evidente a transformação arquitetura da cidade, o desenvolvimento urbano chegou com bastante força em bairros que eram mais tradicionais, que não tinham condomínios, não tinham edifícios…
Quando essa transformação ganhou muita força, os aluguéis sobem, as grandes empresas compram os imóveis e terrenos para desenvolver seus projetos e eu comecei a perceber que essas pessoas de repente não estavam mais lá e isso me acendeu uma luzinha.”
Desde que começou o projeto, Cristiano conta que muitos dos retratados já não estão mais no mesmo estabelecimento.
“Esse perfil de trabalho sempre vai precisar existir, mas ele vai ficar cada vez mais invisível. Onde está aquele alfaiate, aquele sapateiro, aquele serralheiro?
No fundo elas não desaparecem por completo, mas vão ficando muito invisíveis, ou vão ficando muito específicas na sua demanda. Aí juntou meu lado economia com fotografia, porque tem a ver com globalização, documentário social, etc.”
Ele começou a tirar as fotos tentando também conhecer as histórias dessas pessoas para criar um panorama de memória e de conhecimento dessas profissões:
“Eu tento entender um contexto mais amplo e um pouco da vida de cada um. Há quanto tempo está lá? Como é a vida dele? A família? Essa conversa acaba criando uma espontaneidade das pessoas no momento de fotografar.”
Das conversas que teve, Cristiano pode perceber a resiliência e dedicação dos profissionais que persistem nessas profissões:
“As pessoas que continuam são muito convictas. ela fazem porque aquele é o ofício delas, elas gostam, aprenderam. Uma coisa muito legal é que elas gostam de fazer algo bem feito. Tem um aprendizado que foi construído ao longo do tempo.
E eu acho que isso é uma mudança que acontece hoje. As pessoas de hoje são mais imediatistas e esses profissionais mantém essa ética do trabalho, de você construir um conhecimento e ir melhorando ao longo do tempo.”
Cristiano começou fotografando na região metropolitana de São Paulo. Tocando o projeto de maneira independente, ele aproveitou duas viagens a trabalho – para o Equador e para a Espanha – e expandiu o seu projeto sobre profissões internacionalmente.
Falando sobre como é o processo de encontrar profissionais para fotografar, Cristiano conta que a busca é quase artesanal.
“Tem que fazer a pé, e você tem que ir andando, e conversando com as pessoas e descobrindo onde tem uma coisa, onde tem outra. E quando chega nas pessoas tem que apresentar e explicar.
Quando você chega nessas pessoas e diz que você quer fotografar, em alguma medida elas se sentem reconhecidas. Tem uma resistência, mas se você aprende como conduzir, você quebra a resistência da pessoa de se deixar fotografar.”
Cristiano conta que a princípio não escolhia que profissionais queria fotografar, no entanto, depois passou a selecionar algumas profissões de interesse e ir atrás delas. Procurando com direcionamento ou sem, ele ressalta a importância de estar aberto aos encontros que não poderiam ser planejados.
“Por exemplo, tem um senhor que eu fotografei lá no equador, que ele faz celas de cavalo e eu vi que as pessoas vinham de longe pra encomendar cela. Lá, como alguns vilarejos são muito isolados, é muito montanhoso, o cavalo é um meio de transporte muito importante. A pessoa investe nisso, junta dinheiro, encomenda uma cela e isso foi uma coisa que eu encontrei lá, ao acaso.”
Pensando nas diferenças entre as diferentes cidades que fotografou, Cristiano fala:
"Acho que as grandes cidades impõe essa mudança não só por uma questão de desenvolvimento tecnológico, que substitui um modo de fazer e produzir – porque fica menos pessoal – mas também tem uma questão do desenvolvimento urbano.
São muitas forças. Nas comunidades menores o desenvolvimento urbano tem menos força, mas as mudanças culturais são muito fortes, no sentido de que os jovens não querem esses trabalhos. Eles querem um trabalho mais ligado a uma questão mais contemporânea, seja na área de serviços, ou muitas vezes querem sair da cidade.”
Das peculiaridades que Cristiano pode perceber em seu caminho de seguir pesquisando e fotografando, uma delas é a história de Maria. Ela mantém suportes antigos, como a câmara de madeira das antigas máquinas fotográficas de rua, como um suporte simbólico.
A foto é feita por uma câmera digital que fica dentro da caixa de madeira. A caixa em si acaba servindo como uma ferramenta de marketing, que identifica sua função. Ou também como um símbolo que mantém o ritual tradicional da foto 3×4 na praça.
Assim como os barbeiros, outras profissões que ganharem versões repaginas nos dias de hoje (gourmetizadas), também sofreram um impacto financeiro negativo nas suas formas mais rústicas:
“O barbeiro entra nessa questão do gourmet. Muitas dessas profissões que não serão substituídas sofrem, digamos assim, da “marca”, do aporte do marketing, da comunicação mais eficaz: ‘ah vai sentar numa cadeira que é da década de 50 e você toma uma cerveja enquanto o cara corta seu cabelo, pipipi, popopó’.
A relação de outros profissionais, como a deste barbeiro, é uma relação com a comunidade ao redor dele. Ele é alguém que está ali que cria laços ao redor e desempenha a profissão dele atendendo aquela comunidade. Então, quando isso se perde, o barbeiro também sofre porque muita gente acaba se influenciando pelos meios de comunicação e aderindo a esse imaginário da marca, do barbeiro gourmet, do borracheiro gourmet”.
Quando começou a fotografar, Cristiano trabalhava com foto jornalista viajando o mundo o vendendo matérias para revistas impressas. Com a globalização e o desenvolvimento da tecnologia, sua própria área foi impactada:
“Trabalhei uns 9 anos com fotojornalismo, reportagem, social, cultural, ambiental, produzindo matérias fotográficas que eram vendidas para jornais.
Viajava bastante e, para viabilizar isso, eu comecei a escrever minhas matérias porque isso facilitava muito a venda. Mas adiante, quando a internet se tornou banda larga, ela mudou muito o mercado para quem trabalhava dessa forma, como freelancer, produzindo jornalismo fotográfico independente.
Na realidade ela permitiu que as pessoas que estivesse nesses lugares, para os quais eu ia, também pudessem encaminhar seu material. Mudou muito o mercado.”
Perguntei, então se o fotojornalismo é uma dessas profissões que está desvanecendo:
“Com certeza o fotojornalismo também é uma área que sofre impactos de ressignificação. É uma boa pergunta, se a gente pensar que os grandes jornais se reconfiguraram, isso mexeu nos canais de publicação do trabalho do fotojornalista.”
Cristiano já expôs parte deste seu projeto que, inclusive passou 4 meses em exposição itinerante pelo metrô de São Paulo. No entanto, o fotógrafo não dá o projeto por terminado. Ele tem planos para continuar a busca em outras regiões do Brasil, como o Sul, interior do nordeste e norte de Minas Gerais.
Como próximos passos, ele pretende transformar o projeto Invisíveis em livro e em documentário multimídia. Cristiano Burmester também é autor dos livros Conhecendo o Mar do Brasil (2012) e Himalaia (2017).
Queremos saber como vocês, leitores percebem estas mudanças nos seus bairros e cidades. Quais profissões você percebe que está desaparecendo aos poucos? Quais você acha que ainda precisam ser fotogradas?
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